Primeiro insultaram os jovens, mas não me importei porque não sou jovem. Não, agora a sério: primeiro insultaram realmente os jovens. Foi uma inovação. Durante décadas, escorreu por aí um discurso acerca da necessidade de envolver os jovens na política como se isso, por si, constituísse uma virtude e um avanço civilizacional. Havia correntes de opinião a reclamar a descida da idade de voto para os dezasseis anos. Havia jornadas e acampamentos das juventudes partidárias. Com abundância de paternalismo e impecável conversa mole, produziam-se chavões lindos que combinavam numa frase os “jovens” e o “futuro”. Os jovens eram o futuro, do país, da humanidade, do planeta e da Via Láctea. Os jovens eram a esperança. Os jovens eram a “irreverência”. Eram.

Tudo acabou a 10 de Março, quando se percebeu que a maioria dos jovens votou à “direita”, e que uma parte significativa desses jovens votou, Deus nos acuda, no Chega. Desde esse momento que a percepção deu uma cambalhota: os jovens sonhadores e imaginários do passado afinal são um motivo de preocupação. No serão daquele Domingo, a “geração mais informada e esclarecida de sempre” transformou-se num bando de calões, burros que nem portas, intolerantes que nem postigos. A culpa é do TikTok. Dos videojogos. Da escola. Dos pais. De todos nós, embora sobretudo de todos eles, esses imberbes e mimados fachos.

Depois insultaram os ex-abstencionistas, uma segunda inovação. Passei a vida a ouvir relambórios sobre os riscos do abstencionismo e a relevância de o combater. Até há uns dias, votar era um dever cívico, e não faltava quem quisesse alterá-lo para uma obrigação inscrita na lei. Em vez de uma preferência banal, o alheamento dos cidadãos face aos actos eleitorais representava uma ameaça ao próprio regime, quiçá um prenúncio do Apocalipse. Qualquer subida da abstenção causava pranto público. Qualquer descida, ainda que ligeira, era festejada com orgulho patriótico. Era.

A 10 de Março, a abstenção caiu a pique e ninguém festejou. Mesmo que uma quantidade impressionante de gente resolvesse ir às urnas, a verdade – e a desgraça – é que o fez principalmente para votar à “direita” e com generosidade, ai Jesus, no Chega. Num ápice, as hossanas à “participação” evaporaram-se. E o “dever cívico” tornou-se uma chacota dos sagrados valores democráticos. Em estúdios televisivos, comentadores pesarosos afirmaram que, para cometerem semelhante vergonha, mais valia que os eleitores não tivessem saído de casa. Os ex-abstencionistas, descobriu-se com pesar, são fachos.

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A seguir insultaram-se os emigrantes. Os emigrantes, que espalhavam pelo mundo o melhor de Portugal. Os emigrantes, a nobre matéria da nossa diáspora. Os emigrantes, que justificavam centenas de périplos oficiais de deputados, ministros e presidentes, invariavelmente rendidos ao “calor humano” das “comunidades” lusitanas. Os emigrantes eram a bravura que exportávamos, eram os cérebros que fugiam, eram os justos descendentes de Cabral e Magalhães. Eram.

Deixaram de o ser a 10 de Março. Ou a 20, para ser exacto. Os emigrantes votaram, votaram mais do que costumavam e, inacreditavelmente, votaram em largas doses na “direita” do, cruz credo, Chega. As sombras anoiteceram a Metrópole, que ficou um breu ao concluir que, para cúmulo, o intelectual Santos Silva fora varrido do parlamento por troca com um antigo emigrante ilegal em França, onde vendia bacalhaus ou assentava tijolo ou alguma coisa decerto menos prestigiante que a sociologia e a devoção a Guterres, Sócrates, Costa e Lula da Silva. Nos “media”, as análises especializadas não demoraram. Além dos que receitam a cessação do direito de voto a semelhante corja, defrontaram-se a tese de que os emigrantes são ingratos versus a tese de que os emigrantes são traidores versus a tese de que os imigrantes são estúpidos versus a tese de que os emigrantes no Brasil foram influenciados pelo sr. Bolsonaro (?). Um ponto mostrou-se consensual: os emigrantes são fachos.

Enquanto se estende a merecida rajada de ofensas aos algarvios e aos concelhos, freguesias, ruas e famílias do território nacional que votaram substancialmente no, vade retro, Chega, convém reflectir e mudar de rumo. Daqui em diante, das duas uma: ou se proíbe os fachos de votar ou se proíbe os fachos de concorrer. O que não podemos é continuar a tolerar partidos e eleitores intolerantes. Contra a discriminação, urge discriminá-los. Se “Abril”, entre aspas e vénias, existiu para que o povo escolha em liberdade, o povo é livre de escolher bem, ou seja, escolher as forças defensoras do pluralismo, ou seja a esquerda. Se o povo escolhe mal, leia-se a direita reaccionária habitual e – abrenúncio – o Chega, é sinal decisivo de que não se está a cumprir “Abril”. E cumprir Março dá nisto. A vontade popular é soberana, a má vontade não.

Nota: Alberto Gonçalves estará de férias na próximas duas semanas. A crónica regressa no dia 13 de Abril.