Arturo Pérez-Reverte mostra-nos a maldade na trilogia que se inicia com Falcó, um espião que não acredita na causa franquista a favor do qual luta. A sua descrença coloca-o acima do conflito que dilacera a Espanha e realça a sua frieza ao mesmo tempo que o individualiza. É pelo sentido do dever que deixa morrer quem admira (porque não compreende) tal como é em violação desse mesmo dever que salva quem (por ser caso único) o arrebata. Será Lorenzo Falcó uma pessoa essencialmente má, sem escrúpulos e cruel? Sinceramente não sei e também não interessa.
A maldade é uma caraterística humana e individual. Se todos somos maus da mesma forma que conseguimos ser bons, já cabe a cada um escolher o que nos define em cada acto. Debruço-me sobre o tema porque a maldade dos Talibãs tem dado que falar no seguimento deste texto no Expresso. Serão os Talibãs maus? Será possível qualificar como más (ou boas) pessoas que individualmente não conhecemos? Será que podemos definir como más (ou boas) as pessoas e não antes as acções que elas praticam? Na verdade, um acto (porque único e determinado no tempo) está certo ou errado enquanto quem o pratica pode mudar; pode arrepender-se tal como pode não repetir o que fez. Pode agir mal e depois bem ou bem e de seguida mal.
O direito dá-nos uma boa ajuda na resposta a esta questão. No direito não se pune a pessoa em si mesma, mas quem praticou o acto que se condena. Não há uma acusação moral, tal como as condenações judiciais não têm carácter moral. Estas visam punir para que se mantenha a ordem, por respeito à vítima, para tornar evidente que o acto é socialmente condenável. Punem-se os actos praticados por pessoas mas não se pretende castigar a pessoa. Uma vez mais, os tribunais não fazem julgamentos morais. Esta evidência tantas vezes confundida foi desenvolvida por Cristo: o não atirar a primeira pedra, o valor do perdão, o não julgar, o não lançar falsos testemunhos, o não denegrir quem agiu mal. A diferença entre perdoar e não esquecer.
Não faz qualquer sentido afirmar que os Talibãs não são maldosos, mas já conseguimos concluir que os seus actos o sejam. A agressão às mulheres, entre outras barbaridades cometidas, são actos maldosos porque praticados por pessoas. Os animais, como os leões por exemplo, já não praticam o mal que é uma característica humana. Podemos condenar ou não os actos e agir ou nada fazer contra estes. Tal como nos podemos considerar incapazes de resolver problemas desta dimensão. É que se um comportamento não define a pessoa, a maldade ou bondade de um acto depende também da possibilidade de impedir outro: não será o custo infligido na vida de soldados e outros voluntários uma maldade que nos deve fazer desistir de combater outra crueldade?
Iniciei esta crónica com a fabulosa personagem de Pérez-Reverte porque ela retrata bem a complexidade do que possa ser bom e mau. Sobre a nossa reacção contra algo que discordamos ou não compreendemos. Sobre como é impossível qualificar alguém de intrinsecamente mau (ou genuinamente bom) na medida em que desconhecemos a realidade concreta que levou ao comportamento dessa pessoa em particular. Lorenzo Falcó agiu uma vezes mal, outras bem. Há um momento em que a sua atitude nos dá a volta ao estômago, mas se não tivesse feito o que fez, se tivesse demonstrado compaixão e salvo da morte os que com ele estavam na praia e nele confiavam, as consequências nefastas da sua falta de frieza podiam ser fatais para muitos outros.
Não interessa discutir se os Talibãs são bons ou maus. É uma discussão sem sentido. Os seus comportamentos estão errados. O discordarmos deles não nos obriga a combatê-los pois o custo desse combate obriga a sacrifícios demasiado custosos. É pena que assim seja, mas é precisamente por essa razão que não se julgam pessoas, mas actos, não se confunde moral com direito e as relações entre os estados não se equiparam às relações entre os indivíduos.