Aqui há uns anos, não tantos como isso, fiz um artigo como este onde me dei ao trabalho de fazer uma estimativa da preparação matemática daqueles a quem damos a responsabilidade de fazer leis. A estimativa apontava que cerca de 70% dos deputados tinham terminado a sua educação em Matemática no 9º ano de escolaridade. Ou seja, as leis da República podem ser alteradas por uma maioria qualificada com a preparação matemática de uma criança de 15 anos. É, por isso, natural, senão expectável, que sejam esses mesmos legisladores a terminarem com o exame a conhecimentos que nunca foram necessários para o sucesso das suas vidas.
Lembrei-me disto por ocasião das recentes eleições espanholas e das discussões em torno daquilo a que se convencionou chamar de “geringonças”, pactos pós-eleitorais de partidos que tornam derrotas no voto em vitórias de governação pela união dos derrotados. Esta discussão, que parece lógica neste ambiente político em que a lógica matemática é desvalorizada, é um disparate visto num pressuposto de respeito pela vontade do povo, o princípio basilar de toda a democracia ocidental. Como também não quero impor a obrigatoriedade de o exame de Matemática para o leitor aceder a estas linhas, deixem-me desenvolver.
Um sistema eleitoral é um sistema fechado, no sentido em que se olhar para o voto e inventar um partido nessa altura, esse partido não vai contar. Os partidos que entram no processo eleitoral são aqueles que saem, nenhum é criado no processo. Portanto, vendo individualmente cada partido, o eleitor fez uma escolha binária: ou quis votar nele ou recusou votar nele. E isto é válido para todo o universo de eleitores, abstencionistas incluídos. A exclusão dos abstencionistas é uma decisão meramente administrativa na contagem dos votos, mas na contagem dos não-votos fazem sempre parte. Porque é que isto é importante? Porque se o sistema é fechado, poderá fazer sentido que só se contem os votos para a escolha, mas a recusa de votar é relevante para o conjunto complementar. Se essa recusa é causada por uma vincada convicção política ou porque a praia fala mais alto, isso é irrelevante para a contagem da recusa.
Quando pensamos numa medida, temos de pensar que, se um conjunto é relevante, o seu complementar também o é. Se o voto é mensurável, o não voto também se mede. No caso eleitoral, se o voto é uma escolha de um partido, o não voto é a sua recusa. Podemos pensar “bem, alguém tem de ganhar…”, mas isso significa “bem, alguém tem de perder…”. Mas podemos juntar os que perdem para dar uma união que ganha, usando aqueles argumentos da “eleição dos representantes do povo”, “que não se elegem primeiros-ministros” e outras patranhas emanadas de ambientes desprovidos de lógica? Podemos, se ignorarmos a Matemática e a vontade popular em conjunto. Pensemos na “geringonça” lusitana de 2015 (poderíamos pegar na açoriana que era à direita, mas a nacional é mais adequada à discussão ibérica). Lembremo-nos que se juntaram os votos do PS, PCP e BE para que fosse nomeado um primeiro-ministro do PS. Eu sei que não foram exatamente os votos, mas os votos dos representantes dos votos, o que leva à mesma coisa num parlamento que passou a funcionar como colégio eleitoral. Do ponto de vista aritmético, somaram-se os votos dos 3 partidos, mas do ponto de vista matemático conjugaram-se os não-votos. Em português corrente, fez-se um governo com base em “eu podia ter votado no PS, ou no PCP ou no BE” e ignorou-se o facto de igual relevância, mas de muito maior número, que é “eu recusei-me a votar no PS e recusei-me a votar no PCP e recusei-me a votar no BE”. Mas não se pode dar mais importância ao voto que ao não-voto? Pode, afinal não deixamos de ser o país com aquela estimativa de que falei no início de 70% e deve ser por isso que a vontade do povo é ignorada. Pelo menos, quero acreditar que não é por má-fé que tal acontece. Agora, o respeito pela vontade do povo soberano obrigaria, pela lógica, ao respeito do voto e do não-voto. E isso implica dar o governo a quem recebe mais votos expressos e menos não-votos. Ou seja, geringonças estariam sempre excluídas.
Aquilo que agora o caso espanhol revela (e que no caso português gerou prejuízos gravíssimos à sua população) é outro erro que deriva deste desprezo pela vontade popular e que é uma forma de impor uma característica aos dados eleitorais que não existe, a que eu chamo de “pseudo-ergodicidade” (piada nerd…). Podemos resumir este palavrão como ter 3 em cada 100 votos não significa que se tenha direito a 3 em cada 100 decisões. Na realidade, continua a ter-se 3 em cada 100 votos em toda e cada uma das decisões. Mas as mentes menos treinadas na lógica veem ali uma equivalência.
Quando se negociou a geringonça lusitana, bem como a espanhola e açoriana logo de seguida, os partidos que perderam cedem a esses 3 em cada 100 votos uma possibilidade que lhes estava vedada pela vontade popular expressa, a possibilidade de ter 3 em cada 100 decisões. Isto se a negociação for equitativa, o que normalmente não é, porque estamos a falar de políticos. Na verdade, e se contarmos só os votos expressos, 97 em cada 100 eleitores recusaram 100 em cada 100 decisões daquele partido que teve 3 em cada 100 votos. Quando agora se falam em Espanha de ligações com o Vox ou com os independentistas, significa dar-se acesso a essas organizações a uma percentagem de decisões que a esmagadora maioria do eleitorado recusou de facto. No exagero, é como dar ao Chega a possibilidade de limitar 7,18 em cada 100 imigrantes, por ter sido esse o resultado percentual dos votos expressos.
Se observarmos alguma Matemática aplicada à medida da vontade popular percebe-se que eleições baseadas em listas partidárias são uma forma não democrática de alternância de poder (a nossa intuição, de alguma forma, já nos diz isso) e que favorece comportamentos marginais minoritários. Mas, na verdade, os legisladores são os primeiros a quem a Matemática não diz grande coisa, sendo por isso natural que as coisas deste lado do mundo acabem da forma que são. Tal como se compreende que sejam esses mesmos legisladores que não vejam utilidade nos exames de Matemática. Por mim, devo confessar que a ausência de obrigatoriedade do exame de Matemática também não me parece preocupante, no sentido em que as faculdades com cursos de jeito vão selecionar sempre aqueles alunos que o fizeram, o que significa que, na prática, continua a ser obrigatório.
Não se entende, no entanto, a obrigatoriedade do exame de Português porque, a continuarmos desta forma, português é mesmo a língua de que os nossos jovens menos vão precisar no futuro.