Surgiu no Facebook da Paula Bochecha Lebre um texto que me chamou à atenção. A Paula é a mãe da Beatriz, a jovem estudante de Psicologia que foi vítima de homicídio às mãos de um colega de curso. Este texto da Paula surge no seguimento da morte do agressor da sua filha e poderá ter passado despercebido à maior parte dos portugueses. O texto é curto, direto, duro e muito humano. Defende a Paula, e bem, que nunca concordou (e continua a não concordar) com a pena de morte. Defende esta sua posição com dois argumentos: por um lado, “porque deseja viver numa sociedade com elevado nível civilizacional”; por outro, porque “não havendo sistemas infalíveis, prefere um culpado livre do que um inocente no corredor da morte”.
De facto, elevámos o nível civilizacional de Portugal ao deixar de utilizar a pena de morte em 1867. Mas a questão é que isso não basta. Não basta não matar para considerarmos o nível civilizacional de Portugal alto, ou próximo dos níveis desejáveis para um país que se considera desenvolvido. A Paula defende um segundo patamar de elevação: não basta não matar quem matou, é preciso “incondicionalmente proteger as vítimas”. Eu não poderia estar mais de acordo. Só assim elevaremos o nosso nível civilizacional.
Penso que o mais impressionante no texto que a Paula escreve é a capacidade enquanto familiar de uma vítima, e por isso também ela vítima, de manter os seus valores e crenças mesmo perante a família do agressor da sua filha. Não conhecendo a Paula, e com bastante ousadia, arrisco-me a construir sobre as palavras desta, sabendo que provavelmente não eram essas as suas intenções quando publicou o texto.
Estou convicto de que a melhor forma de proteger as vítimas é garantir que os agressores, potenciais ou já existentes, não cometem ou voltam a cometer crimes, ou a agredir, de alguma forma, a liberdade de outros. Assim, a melhor forma de proteger as vítimas é garantir a (re)inserção e a (re)educação dos agressores.
Sei que este é um tema que suscita em nós emoções fortes, muitas vezes contraditórias com os nossos valores e com aquilo em que racionalmente acreditamos. Sei que as reações a esta posição que defendo – e que explicarei de seguida – serão exacerbadas pelas emoções negativas que em nós despoleta este tipo de crime e de agressão. Mas num país de nível civilizacional alto, temos que ser capazes de recorrer também à razão para encontrarmos as melhores soluções para proteger a sociedade e as vítimas.
Defendo que o nosso sistema prisional deve ser repensado de forma eficiente, eficaz e integrada com o resto da sociedade. Que seja pensado à luz da sociedade moderna e das suas necessidades.
Não me parece possível dotar as pessoas reclusas com as ferramentas (emocionais, pessoais e profissionais) essenciais à sua reinserção, mantendo a forma como as nossas prisões estão desenhadas. É crónica, a falta de recursos do nosso sistema prisional, que tem vindo a ser repetidamente preterido, em detrimento de outros sistemas vitais para o nosso país que sofrem da mesma escassez. Será precisa coragem política para fazer determinadas reformas.
Contudo, se queremos mesmo proteger as nossas vítimas, temos que repensar a forma como as penas são cumpridas. Porque se alguns de nós ficam tranquilos por saberem que os agressores A ou B já não estão livres, eu não fico. Sei que, depois de cumprida a pena, voltarão à liberdade, sem que o tempo de reclusão lhes tenha dado a totalidade das ferramentas que precisam para se reinserir.
Nesse sentido, lanço três medidas que acredito que podem ajudar, de forma progressiva, a melhorar o nosso sistema prisional e, logo, a proteger melhor as vítimas, elevando assim o nosso nível civilizacional:
Em primeiro lugar, normalizar a rotina vivida em reclusão. Ou seja, garantir que a rotina de um dia na prisão seja o mais próxima possível do que é a nossa vida em liberdade. Não aprendemos a viver em sociedade e com os outros pelos “livros”, mas pela experiência vivida. Por isso, é essencial alterar horários, aumentar a oferta de programas, as oportunidades de trabalho e permitir um contacto mais próximo e regular com a família e a rede social de suporte. Existem muitos e bons projetos que referi no meu artigo anterior – “Prisões, a detestável solução de que não conseguimos abrir mão”. Mas não chegam. Porque não começar por potenciar a digitalização e a tecnologia nas nossas prisões, tal como proposto pelos Global Shapers e 100 Oportunidades no documento “50 medidas para um debate intergeracional de fundo na sociedade Portuguesa pós-Covid-19”?
Em segundo lugar, criar incentivos para que todos os envolvidos dentro do sistema prisional (direções, técnicos, guardas e reclusos) caminhem no mesmo sentido, o da reinserção. Por exemplo, uma vez que não é possível obrigar ninguém a estudar ou a trabalhar dentro da prisão, porque não criar os incentivos para que o queiram fazer e premiar quem o faz? A chamada remissão de pena, que já existe em países como o Brasil e a Itália, permite que seja abatido um dia de pena por cada três dias de trabalho prestado por uma pessoa reclusa. Estaríamos a poupar recursos ao Estado, a promover a verdadeira reinserção e, por consequência, a proteger as vítimas. Seria uma entre várias possíveis medidas. Este tópico, por si só, poderia dar origem a um só artigo para se refletir e debater com maior profundidade este tipo de medidas.
Por fim, permitir que sejam criadas em Portugal – à semelhança do que acontece noutros países europeus – as chamadas casas de transição para a liberdade, cogeridas pela sociedade civil em estreita colaboração com as autoridades competentes.
O regime excecional de flexibilização das penas consagrado na Lei n.º 9/2020, em resposta à Covid-19, conduziu à libertação de duas mil pessoas reclusas, tendo as medidas implementadas pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e o Ministério da Justiça sido bem sucedidas: não há ainda registos de uma disseminação da pandemia dentro das prisões e a seleção dos reclusos a libertar foi feita com base em critérios objetivos e equilibrados. Contrariamente ao que muitos tentaram veicular, não existem dados que permitam concluir por um aumento de criminalidade na sequência destas medidas excecionais.
Ora, uma maioria significativa destes dois mil reclusos encontrava-se numa fase final de cumprimento de pena. Esta população reclusa – que já se encontra perto do término da pena – carece de uma preparação intensiva de reinserção numa transição para a liberdade, que é iminente. Porque não transferimos estes reclusos do sistema prisional comum (que passaria a ter mais espaço e flexibilidade de gestão) para lugares mais propícios à reinserção, e mais integrados na comunidade, até ao dia da liberdade? Isto pode e deve ser feito não só com a administração central, mas também com a administração local, com as empresas (que podem apoiar com postos de trabalho) e com as organizações do terceiro setor. Este tipo de solução – de cumprimento do fim da pena em locais exteriores às prisões habilitados para o efeito – já é utilizado em países como França, Itália, Holanda e, recentemente, Bélgica.
Acredito que estas medidas poderiam potenciar exponencialmente os resultados do Sistema Prisional, diminuindo drasticamente as taxas de reincidência criminal. Assim, se diminuirmos o número de crimes praticados por aqueles que saem das prisões, estaremos a proteger as vítimas.
Duarte Fonseca nasceu na cidade do Porto, onde se formou em Terapia Ocupacional e trabalhou durante um ano numa prisão. Trabalhou durante quatro anos na Beta-i, como consultor de inovação, e durante três anos na Associação Just a Change. É, atualmente, Diretor Executivo da APAC Portugal, uma associação que cofundou em 2015 e que tem como missão disseminar e implementar novas abordagens que transformem a vida de todos os reclusos, fornecendo-lhes as ferramentas e estímulos necessários à sua efetiva reinserção, promovendo uma sociedade mais coesa e segura, bem como uma maior eficiência para todo o sistema. Entrou para os Global Shapers em 2019.
O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.