It’s Only Rock ’n’ Roll (but I Like It)

Pedro Boucherie Mendes apresenta no seu livro A Década Prodigiosa, publicado pela D. Quixote, um trabalho admirável para recordar o Portugal na década de oitenta. Apesar das cerca de 640 páginas, trata-se claramente de um livro Pop, interessante e divertido, dedicado à geração do autor, nascida no início dos anos 70, um manancial de potenciais leitores: “em 1981, um quarto da população tinha quinze anos ou menos, eram quarenta e quatro idosos por cada cem jovens. Não se desconfiava que em 2021 seriam cento e oitenta e dois velhos por cada cem.” Acontece ao chegar à meia-idade cedermos legitimamente à nostalgia e daqui se depreende o potencial sucesso comercial da obra. De resto, convém ressalvar que este texto não é uma recensão, antes um pretexto para eu contribuir com os meus cinquenta cêntimos sobre o período histórico em causa.

Originário duma família tradicional e conservadora, a cultura Pop é também a minha praia: nascido e criado rodeado de livros, banda desenhada e discos de vinil a rodos, jornais, revistas, televisão, cinema americano e cromos da bola, deliciei-me a recordar a década de oitenta, tempo dos meus destravados vinte anos. Mas a minha década prodigiosa terá sido outra, luminosa e colorida como a bonecada da Linha Clara da escola Franco-Belga. Talvez porque cada geração tende a idealizar a sua infância ou pré-adolescência, quando a realidade nos parece estar estacionada num ponto definitivo, cristalizada. O autor nasceu em 1971, e entende-se o fascínio com que observa e compila as memórias da década seguinte, que também me seduziu a mim, então dez anos mais velho. Mas não será atrevido isolar uma década do resto da cadeia temporal, tomá-la com um perfil e carácter próprio, influenciado por uns quantos acontecimentos e desenvolvimentos tecnológicos marcantes? Serão os anos 40 marcados pela II guerra Mundial, e qual a sua iconografia? Como se destacam os anos 50, quais os símbolos e eventos que marcaram a geração que nos antecede? Os anos sessenta em que nasci inevitavelmente remetem-nos para a cultua hippie, e a afirmação da adolescência como preponderante protagonista da vida pública, política e cultural? Não será a tendência “barroca” e a estética depressiva da música Pop dos anos setenta uma reacção aos excessos juvenis da década anterior? Como se integra a vida política e cultural portuguesa, sempre relativamente atrasada em relação às tendências do restante mundo ocidental, pelos clichés com que nos habituámos a interpretar o Mundo?

O que é facto é que em 1967, ao tempo de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, José Cid produzia com o Quarteto 1111 o EP A Lenda De El-Rei D. Sebastião, e onze anos mais tarde o “nosso Elton John” lançava 10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte, um LP conceptual, que fugia à preponderância da canção revolucionária nos anos setenta. Deste lado do planeta o mundo já era cada vez mais pequeno, progressivamente convertido à hegemonia da cultura anglo-saxónica. Como bem refere Boucherie no seu A Década Prodigiosa, o caminho para a normalização da democracia em Portugal iniciara-se com a improvável maioria absoluta da AD em 1979, justamente um ano antes de No Jardim da Celeste da Banda do Casaco, outro marco importante da Pop nacional na sua libertação das grilhetas revolucionárias, então a perder gás.

Se por um lado sou levado a concordar com a peculiaridade dos anos oitenta em Portugal, o próprio autor por diversas vezes mergulha na década de 70 identificando em grande medida os mesmos traços da seguinte: a supremacia da televisão em casa, ainda que a preto e branco, ponto de confluência das famílias, especialmente das crianças, e a rua como extensão do seu espaço lúdico, onde elas, como “bandos de pardais à solta”, pontuavam a paisagem do bairro ou da cidade, aos molhos a ir ou a vir da escola com a mochila às costas, a jogar à bola com balizas improvisadas ou a recriar com tiros e correrias o episódio do Bonanza que todos tinham visto depois do almoço no único canal de televisão, ou a trocarem os cromos repetidos do Yazalde ou do Jordão.

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Não terá dado por isso Boucherie Mendes, mas os anos 70 comportam na cultura Pop emergente em Portugal uma subtil revolução quase tão importante quanto a dos cravos: a popularização da rádio FM, propagadora, com uma diferenciada qualidade sonora, da música anglo-saxónica, mais ou menos alternativa, mais ou menos sofisticada, que vinha sendo importada do mundo “civilizado”.  Consolidava-se então a hegemonização do inglês como segunda língua, nos media, nas ruas e nos currículos das escolas, que significava o progressivo desaparecimento da francofonia dos nossos pais (os meus pais falavam francês), e com grande tristeza minha, o apagamento da canção francesa da “banda sonora” das novas gerações.

A década de oitenta foi de facto o tempo da consolidação da democracia liberal no nosso país, empurrado por um crescimento económico alavancado pela integração Europeia, pelo consequente dinamismo da iniciativa privada em todos os campos da economia, pela estabilidade governativa que se ensaiava, para a chegada dos governos reformistas de Cavaco Silva. Como resultado, deu-se uma insólita desmultiplicação da oferta cultural, onde a hegemonia da ruidosa esquerda ia abrindo brechas, perante a indomável vontade duma burguesia crescente, rendida aos encantos do consumo e da felicidade que prometia: “os anos 80 foram uma viagem, uma quase peregrinação, com peripécias e momentos, pintada a optimismo que se alimentava porque sabíamos que chegaríamos a um local feliz”. Dando de barato o exagero da generalização, numa visão panorâmica, a observação talvez não esteja muito longe da verdade.

Não sendo o livro uma história cronologicamente relatada, antes o entrelaçar de muitas histórias em diferentes tempos, memórias autonomamente contadas, com sistemática referência às manchetes, à iconografia e aos mediatizados protagonistas da época, a edição merecia um índice remissivo muito mais detalhado, para dessa forma permitir mais facilmente ao leitor saltar de tema ou personagem… Não sendo propriamente um defeito, o livro denota a preponderância talvez exagerada da televisão que, nos anos oitenta com a chegada da cor e novas propostas de programação, das novelas, concursos e programas de entretenimento, na narrativa da obra. A isso não será alheio, não só o facto de Pedro Boucherie Mendes ser um profissional da televisão, como a idade em que viveu essa época. Para quem como eu chegara à maioridade em 1980, a televisão foi durante essa década um plano B, com lugar secundário no quotidiano dum jovem irreverente q.b., assediado por outro tipo de passatempos, digamos, menos virtuais. Por outro lado, tenho ideia de que a minha geração, nessa década, mais que ligada à televisão, estava apegada às rádios FM onde se podia escutar e, com sorte, gravar para uma cassete, LPs inteiros difíceis de obter em Portugal, ou ouvir outros programas, como o Café Concerto da quase esquecida Maria José Mauperim…

A propósito de esquecimentos, A Década Prodigiosa é uma obra memorialista escrita na primeira pessoa, entrelaçando subjectividades sentimentais com dados objectivos, estatísticos e históricos, e principalmente uma profusão de referências a toda a sorte de iconografia da época, de Júlio Isidro ao Tulicreme, de Saramago aos Scorpions, de Ana Salazar a Miguel Esteves Cardoso, de Fernando Pessa à Pepsodent, dos Porfírios ao incêndio no Chiado, da Olá Semanário às anedotas de pretos, da Maria Armanda “Eu Vi um Sapo”, ao “Stor” e “Stora”, do Rock Rendez-vous à banda Roquivários, Vila Faia ou o Casal Ventoso, as lojas Cenoura ou o golo de Carlos Manuel e Saltilho, Carlos Cruz e o 1,2,3, às Doce, enfim; que curiosidade provocará toda esta informação nas gerações vindouras? O que, destas tantas pequenas histórias que ilustraram as nossas vidas, sobreviverá às brumas do esquecimento? Não explicarão elas os contextos que proporcionaram as grandes histórias que construíram o que nos espera no futuro? Ou será A Década Prodigiosa apenas Rock n’ Roll para usufruir com gozo?