É difícil, quase impossível, viver em permanente estado de indignação. A nossa atenção e a nossa sensibilidade não comportam todas as arbitrariedades e injustiças que em cada minuto e segundo afetam pessoas e lugares espalhados por todo o mundo.

A “lei da proximidade” que ajuda à definição do que pode ser notícia é uma das que determina a prática do jornalismo. De acordo com essa lei, as realidades mais próximas, geográfica, social, política ou emocionalmente, chamam mais a atenção dos destinatários das notícias do que outras que lhe sejam mais distantes. Mas esta só é uma regra de orientação editorial porque antes disso é uma regra humana. Acabo de experimentar isso na minha própria pele.

A 16 de agosto ficámos a saber da notícia da dissolução da Universidade Centro Americana na Nicarágua (UCA), Universidade da Companhia de Jesus fundada em 1960. Como jesuíta sempre fui aprendendo a respeitar o trabalho e o profundo compromisso com a justiça dos jesuítas daquela zona do globo. Por isso, a minha apreensão e indignação aumentaram quando, dias depois, o governo de Daniel Ortega cancelou uma das personalidades jurídicas que enquadra a ação da Companhia de Jesus na Nicarágua, confiscando os bens associados a essa organização. Estas iniciativas são arbitrárias e injustificadas e chamaram a minha atenção para uma realidade de ausência de respeito pelos direitos humanos e cívicos que se vem agravando na Nicarágua, em especial desde 2018. A proximidade com os meus companheiros jesuítas rompeu com a minha indiferença relativamente à injustiça de que todo o povo nicaraguano tem sido vítima.

Façamos uma breve cronologia desta crescente injustiça. Daniel Ortega é ininterruptamente presidente da Nicarágua desde 2006. Ortega foi presidente, entre 1984 e 1990, logo após o fim do período somozista. A partir daí foi concorrendo sucessivamente às diversas eleições, mas apenas voltaria a ser eleito em 2006. Em 2014, iniciou um processo de centralização do poder, fazendo aprovar no parlamento nicaraguano uma alteração constitucional que cancelava a disposição que estabelecia um limite de dois mandatos seguidos para o exercício do cargo presidencial. Nessa mesma altura, foi decidido que a eleição do presidente seria por maioria relativa, deixando de lado o limite mínimo de 35% dos votos. O parlamento nicaraguano também concordou em conceder autoridade ao presidente, permitindo que ele emitisse decretos com força de lei e ganhasse a capacidade de estabelecer ou modificar impostos. Em 2017, a esposa de Daniel Ortega, Rosario Murillo, assumiu o cargo de vice-presidente do país, depois de ter sido porta-voz do governo. Estas medidas centralistas mereceram críticas, nomeadamente de investigadores ligados à UCA.

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A intensificação da repressão governamental teve início com os protestos pacíficos contra as reformas no sistema de Segurança Social, ocorridos a partir de 18 de abril de 2018. Diante desses protestos, Daniel Ortega optou por uma abordagem violenta para lidar com a agitação social. Essas ações violentas foram levadas a cabo não apenas pelas forças policiais, mas também por grupos paramilitares apoiados por Ortega. Dessa intervenção resultaram mais de 300 mortos e 2.000 feridos. Procedeu-se também à detenção arbitrária de centenas de indivíduos e revogou-se a cidadania nicaraguense a mais de 300 cidadãos. A instabilidade tanto social quanto económica, juntamente com um clima de repressão, provocou a saída de milhares de pessoas da Nicarágua. Foram também ilegalizadas cerca de 3.000 organizações da sociedade civil (media, direitos humanos, cultura, apoio social, educação). Uma das organizações ilegalizadas e cujos bens foram arrestados foi a Cruz Vermelha, perseguida por ter prestado assistência às vítimas da repressão de 2018. As últimas eleições presidenciais tiveram lugar em 2021, e os seus resultados não foram reconhecidos por 25 dos 34 membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). Importa sublinhar que este ato eleitoral foi precedido pela detenção ou exílio da maioria dos candidatos da oposição e que apenas 25% dos eleitores foi às urnas.

Neste clima de profunda injustiça, a Igreja Católica tem erguido a sua a voz contra todas estas arbitrariedades e, consequentemente, tem sido perseguida de um modo violento. Foram já registados mais de 500 incidentes e até ao momento é possível destacar diversas formas de perseguição:

  • A condenação do bispo Rolando Álvarez a 26 anos de prisão em fevereiro deste ano por alegada prática de crimes de conspiração e divulgação de notícias falsas. O bispo nicaraguense preferiu a prisão ao exílio;
  • O exílio de 37 sacerdotes e a expulsão de 65 religiosas do país;
  • Confiscação de várias propriedades da Igreja;
  • Encerramento de meios de comunicação católicos;
  • Repressão de manifestações pacíficas e de atos religiosos;
  • Expulsão das Missionárias da Caridade (ordem religiosa que foi fundada pela Madre Teresa de Calcutá) e das Religiosas da Cruz do Sagrado Coração;
  • Proibição das procissões da Semana Santa;
  • Dissolução da UCA – instituição que desde 1960 teve um papel essencial na formação universitária e na consciencialização crítica dos seus estudantes contra as diversas formas de injustiça.

O mais recente ataque à Companhia de Jesus, que se fica a dever à sua importância na vida social da Nicarágua e ao reconhecimento público pelo seu constante compromisso com a justiça social, é deste modo um caso mais de violência e ataque à liberdade de consciência, de expressão e de religião. Mais um ataque num role, já inumerável, de situações que colocam em causa a dignidade das pessoas e a defesa dos direitos humanos. José Maria Tojera, SJ, jesuíta espanhol, era reitor da Universidade Centro Americana em El Salvador quando seis jesuítas foram massacrados em 1989. Atualmente é porta-voz da Companhia de Jesus sobre a presente situação na Nicarágua. Não deixa de ser muito significativo que considere que na Nicarágua, se tenha estabelecido “um regime de terror, prisão e ameaças muito mais severo do que o que existiu em El Salvador”.

É verdade que a União Europeia já decidiu sanções contra a Nicarágua. É igualmente verdade que já houve quem alertasse contra esta situação. De modo idêntico, teremos que reconhecer que é impossível viver constantemente indignado. Mas o que se passa na Nicarágua é já suficientemente sistémico para que façamos de conta que não sabemos. A proximidade com os meus companheiros jesuítas da Nicarágua ajudou-me a tomar consciência do que ali se passa. Mas parece-me essencial que a comunidade internacional e a opinião pública se esforcem para não deixar que esta situação se torne invisível. Em Portugal, nos últimos seis anos de tantas arbitrariedades, o impacto mediático foi muito reduzido. Talvez seja tempo de romper que esta invisibilidade.