No dia 23 de Maio, a revista Der Spiegel publicou um interessante artigo (“Alternative for Germany Party Gains Ground Ahead of Elections”) sobre a ascensão da Alternativa para a Alemanha (AfD). Segundo os autores do artigo, a principal causa do ressurgimento da AfD foi a colaboração da CDU/CSU com a AfD em diversas municipalidades, regiões e estados alemães. Ou seja, terá sido a dita cooperação que normalizou o radicalismo da AfD, tornando-o politicamente mais atractivo para as massas incautas. Os autores do artigo não explicam porquê. Presumem, simplesmente, que a cooperação dos moderados com os radicais engendra uma espécie de contágio ideológico que se propaga rapidamente.

Examinemos este argumento. Primeiro, podemos supor a colaboração entre moderados e radicais é mais significativa na formação de preferências políticas do que a percepção do actual estado de coisas, especialmente das condições de vida e da performance de um governo e de um estado? Parece-me evidente que não. No longo artigo, nem uma palavra é dedicada à transferência de centenas de bilhões de Euros durante a após a crise financeira de 2008, facto que muito contribuiu para a deserção dos nacionalistas económicos da CDU/CSU, três dos quais fundaram a AfD. Nada é dito acerca do papel crucial da imigração e da política de “open arms” de Merkel na radicalização de uma parte do eleitorado alemão, sobretudo na economicamente deprimida ex-RDA. A imigração não é eticamente indefensável, mas é um problema político porque, quer se queira quer não, não são poucos os que a ela se opõem por diversas razões.

Compreender e justificar são tarefas epistemológicas distinctas. Presentemente, quem se atreve a dizer que a imigração é um problema político espinhoso é imediatamente estigmatizado publicamente com a acusação de racismo. Nada é dito acerca do legado do totalitarismo comunista na ex-RDA que engendrou um ressentimento de tal magnitude que induziu muitos a contemplar nostalgicamente o “grandeur” histórico do Nacional Socialismo na intimidade do lar, longe das políticas deliberadamente amnésicas do regime comunista. O passado nazi foi reprimido (na RDA) pelo comunismo, mas como qualquer repressão digna do nome, engendrou uma tenebrosa sublimação do nacionalismo intolerante. O fim do comunismo tornou possível a sua expressão.

O eleitorado da AfD não foi criado ex nihilo por uma elaborada construção social-discursiva Wendtiana ou Foucauldiana ou pelas relações políticas e discursivas entre actores políticos. Já existia como tradição histórica e a sua explicitação e expansão teve muito mais que ver com condições sociais do que com estratégias eleitorais. A tese da normalização, nas suas variadas vertentes, reduz um complexo processo histórico a um verdadeiramente patético modelo da “Ciência Política” que tudo ofusca. O modelo faz-se sempre acompanhar de uma boa dose de moralismo militante que depressa suplanta a mais elementar sensibilidade histórica. A miopia “analítica destes senhores é de tal ordem que nada é dito acerca do Nacional Socialismo e do perverso legado do totalitarismo comunista. Foram estes eventos, e outros que não posso aqui abordar por falta de espaço, que contribuíram decisivamente para a cristalização de uma ideologia que, apesar de invisível no esfera mediática, permaneceu culturalmente latente. De certa forma, a popularidade da tese evidencia a alienação de muitos jornalistas e investigadores que assumem que o cosmopolitismo liberal que tende a predominar nos grandes centros urbanos, universidades e nos media é simplesmente normal noutras latitudes. Tem muito que aprender com os antropólogos culturais.

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Os autores do artigo também evidenciam uma embaraçosa ignorância acerca do funcionamento de um partido político sofisticado e bem dotado de recursos, como é o caso da CDU/CSU. A decisão de colaborar com a AfD não foi tomada de ânimo leve. Os investigadores do partido certamente auscultaram o seu eleitorado antes de decidirem cooperar com um partido estigmatizado. O “custo” da acusação da normalização (dos radicais) há muito que é debatido publicamente. A CDU/CSU não é, certamente, um partido de suicidas eleitorais. Porque é que a liderança da CDU/CSU decidiu cooperar com a AfD, não obstante os evidentes custos reputacionais? Porque perceberam que os eventos acima citados e outros já haviam normalizado boa parte dos argumentos da AfD. Este é o facto espinhoso que os defensores da tese da normalização não desejam reconhecer. Ou seja, não foi a cooperação que causou a normalização. Ao contrário, meus caros, foi a normalização que possibilitou a colaboração.

Não raramente, os proponentes da tese da normalização defendem a imposição de um cordão sanitário em torno da direita radical ou extremista. Nada mais lógico. Se a colaboração normaliza, então os radicais e os extremistas devem ser isolados. A verdade, todavia, é bastante mais complexa. Em diversos países, a extrema-direita ressurgiu com grande fulgor, não obstante a imposição do cordão. De facto, a ineficácia comprovada do cordão evidencia o quão absurda é a tese da normalização.

Dito isto, um interessante e rigoroso estudo levado a cabo por Pedro Riera (Universidade de Madrid) e Marco Pastor (Universidade de Oxford) parece demonstrar que são os partidos populistas radicais que mais perdem quanto participam em coligações  eleitorais com partidos da direita moderada como “junior partners”. Aparentemente, a percepção de que são partidos normais não os beneficia eleitoralmente. Muito pelo contrário.