Legisladores do Wyoming, nos EUA, aprovaram um projeto de lei que proíbe os tribunais estaduais de ordenar que alguém revele as chaves secretas dos seus ativos digitais. Segundo a proposta de lei, “Nenhuma pessoa será compelida a produzir uma chave privada ou divulgar uma chave privada a qualquer outra pessoa em qualquer procedimento civil, criminal, administrativo, legislativo ou outro[s]”.
Acompanhamos este exemplo, enquanto que, por cá, ainda não se fala no assunto. Trata-se de um silêncio preocupante, pois julgamos que a principal batalha política do pós-guerra será travada na fronteira do direito à privacidade, à propriedade privada e à própria liberdade. Viver no mundo livre será manter o direito inalienável à utilização de chaves privadas por parte dos cidadãos, sendo que a “cortina de ferro” do século XXI terá uma natureza digital.
Iremos necessitar de chaves privadas para tudo aquilo que envolva fazer prova da nossa identidade digital. Estamos a falar das interações com muitos dispositivos e serviços digitalmente assistidos, que serão, sem sombra de dúvida, os mais utilizados no nosso quotidiano. Na verdade, precisaremos de recorrer a tais chaves para fazer tudo e mais alguma coisa.
Em regimes autoritários esta questão nem se coloca. Nesses palcos antidemocráticos a nova cortina de ferro já desce sobre os figurantes, e aquele que deveria ser o chaveiro da privacidade e da liberdade dos cidadãos foi confiscado por dirigentes autocratas que fazem chaves à medida das suas conveniências. Por isso, seria bom discutir este assunto enquanto é tempo.
Na era digital, o mundo livre não depende apenas de fronteiras físicas. Tecnologias como a Inteligência Artificial (IA) e a Blockchain reforçam-se mutuamente na respetiva eficácia, tornando as fronteiras virtuais inexoravelmente reais. Neste campo de batalha, as moedas digitais dos bancos centrais (CBDC) podem ser mais felinas do que os tanques “Leopard” utilizados para defender a liberdade, devassando com precisão balística as desprotegidas carteiras digitais dos cidadãos.
Assim, para atingir o equilíbrio entre a proteção da privacidade e a garantia da segurança pública, é tarefa imprescindível da democracia criar legislação que defenda a autonomia individual a múltiplos níveis e assegure a transparência no manuseamento de chaves privadas por parte do Estado.
Acredita-se que todo o cidadão impoluto deve ter o direito de manter a confidencialidade das suas chaves privadas, e que as autoridades só deverão solicitar o respetivo acesso no caso de ser emitida uma ordem judicial fundamentada em evidências razoáveis de uma atividade ilegal. É que a democracia e o Estado de Direito não são compatíveis com a transformação de casos de polícia no policiamento de todos os casos, sendo certo que os Estados Policiais ficarão no lado sombrio da nova cortina de ferro da era digital.
É preciso assegurar que as chaves privadas dos cidadãos apenas serão utilizadas para fins legais e na medida estritamente necessária para proteger a segurança pública ou investigar atividades criminosas. Para tal, as autoridades devem garantir a segurança das chaves criptográficas privadas que obtiverem e só deverão compartilhár tais “passwords” secretas com terceiros por ordem judicial.
Para defender a democracia, o uso abusivo de chaves privadas deve constituir uma violação dos direitos humanos, e estar sujeito a sanções e responsabilidades civis e criminais. Também as empresas que fornecem serviços de armazenamento de chaves criptográficas privadas devem adotar medidas de segurança adequadas à proteção da privacidade dos utilizadores, à semelhança do próprio Estado que deve ser responsabilizado por práticas que violem ou propiciem a violação da privacidade dos cidadãos.
Tendo em conta que a tecnologia blockchain automatiza a confiança (baseando-a de forma expedita no rigor matemático), e que a IA faz o mesmo ao raciocínio (baseando-o de forma expedita no método indutivo), é quase absurdo que as enormes implicações político-económicas destas tecnologias disruptivas não sejam debatidas no parlamento e nos órgãos de comunicação social.
Consoante as nossas decisões, a evolução tecnológica irá favorecer ou minar a democracia; distribuir a automatização da confiança e do raciocínio tanto pode servir para aprimorar o associativismo comunitário, como para afinar o conluio corporativo e antidemocrático. Há que decidir se descentralizamos ou centralizamos tão poderosas tecnologias distribuídas, pelo que o silêncio em matéria tão crucial é incompreensível. Para defender a democracia não basta reunir o altar da Web Summit, sendo que às vezes até parece não vivermos neste planeta.