Há muitos motivos para simpatizarmos com a luta de um cidadão para que os seus filhos não frequentem a “disciplina” de Educação Para a Cidadania, ou Cidadania e Desenvolvimento (as fontes variam e, dada a cretinice do tema, não serei eu a torturá-las para apurar a verdade: fica “Cidadania”).
O primeiro motivo, um tanto aborrecido, é constitucional: “Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” e “O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, diz o Texto, Sagrado para umas coisas e absolutamente desprezível no que toca a outras. Parece uma questão de bom senso. Para os estatistas, é um ultraje. Um secretário de Estado, o sr. Galamba, acha que os pais decidirem o que é melhor para os filhos é delírio de “libertários”, e que compete ao Estado, leia-se a vultos do gabarito do sr. Galamba, a tarefa de corrigir a péssima influência de certos progenitores. No mundo real, suspeito que até progenitores alcoólicos, xenófobos e praticantes da bisca são preferíveis à catequese de frei Galamba.
Aqui chegamos ao segundo motivo. Não há regime sem tentação de educar as massas. Nos regimes democráticos, o esforço é subtil e, na pior das hipóteses, um bocadinho traumático. Nos regimes de tendência autoritária, como o vigente neste lugar sem sorte, o esforço é brutal. E perigoso. Da Juventude Hitleriana ao Komsomol soviético, nenhum governo totalitário dispensou a criação do “jovem ideal”, ou seja, de encher as cabecinhas das crianças com restolho doutrinário. O objectivo era a produção de cidadãos exemplares, naturalmente incapazes de questionar os crimes dos seus superiores e capazes de lhes obedecer com alegria. As ditaduras moderadas (ver “salazarismo”) tinham versões moderadas disto (ver “Mocidade Portuguesa”). Sucede que nações decentes não ambicionam modelar súbditos, e sim constatar a coexistência livre de pessoas livres. E por “livres” entenda-se a faculdade de, caso queiram, detestar zulus ou admirar o dr. Costa – a liberdade não se mede pela sensatez.
Eis o terceiro motivo. Dado que, num membro da UE e em 2020, seria talvez excessivo enfiar farda nas crianças e pô-las aos “vivas!” ao governo, em marcha acesa e punho erguido, o “ensino”, ou o conjunto de atrocidades que passa por “ensino”, serve para compensar esse desagradável revés. Já há trinta e tal anos, tive professoras de liceu que tocavam discos de “Zeca” Afonso nas aulas (o “tiriririri” de “Venham Mais Cinco” é fundamental à fruição da língua). Imagino as palhaçadas que hoje acontecem por aí. Pelos vistos, não aconteciam as suficientes e houve que inventar a cadeira de “Cidadania”, para as palhaçadas se explanarem com à-vontade. Convém notar que o cenário para as ditas não é a escola, mas o Chapitô.
E cá está o quarto motivo. Como a função da escola, a verdadeira, é fornecer conhecimentos técnicos e rudimentos para pensar, ao contrário de evangelhos para repetir, as “matérias” devem ser o mais impermeáveis possível à subjectividade, a do professor e a das criaturas que concebem os programas. Claro que isto é relativamente simples de conseguir nas ciências de facto, Matemática, Física, etc., onde os discos do “Zeca” ou do padre Fanhais soariam esquisitos. E menos simples de assegurar nas aulas de Português, História ou Economia, onde os docentes podem, ocasionalmente, emitir palpites que ninguém lhes pediu. Na disciplina de “Cidadania”, porém, a subjectividade é o programa completo e a “matéria” inteira. Os alunos não saem dali prontos a debater: sobretudo se não beneficiarem de contraponto caseiro, saem prontos a reproduzir uma cartilha, para cúmulo uma cartilha pensada por “activistas” de esquerda ou ociosos sortidos. É a religião deles, e a moral idem.
Vamos ao quinto motivo. Os “conteúdos” da “Cidadania” oscilam entre o mofo das regras de trânsito (e da economia doméstica) e o “progressismo” beato da “identidade de género” (e das “alterações climáticas”). Um pirralho de 12 anos precisa que a escola o ensine a atravessar a rua ou a ponderar uma mudança de sexo aos 16? Não precisa. Precisa de saber ler, escrever e contar e, com sorte, raciocinar, tarefas que os espécimes entusiasmados com a tralha das “causas” não dominam – donde o entusiasmo por “assuntos” simples. Um senhor João Costa, sec. da Educação, escreveu a propósito um artiguito no “Público” onde evidencia as carências citadas: se devidamente educado, nem o pirralho de 12 anos assinaria tamanha miséria lexical e argumentativa. Segundo o indivíduo, quem discorda da “Cidadania” não é bom cidadão, no sentido em que quem não janta no Petiscos da Avó morre de fome. Uma das Manas Mortágua defende a “Cidadania” a pretexto da defesa dos “direitos humanos”, também incluídos naquilo. Lembro que, no que respeita aos “direitos humanos”, as Manas Mortágua partilham o conceito de Lenine.
Olhem o sexto motivo, para mim decisivo e bastante. Se “neutra” e “consensual”, a “Cidadania” não seria louvada pelos que a louvam. Autoritários e intolerantes, os partidários da “Cidadania” são os cidadãos de que o país se poderia livrar sem qualquer prejuízo. Dos que vi, não vi um só sujeito habilitado a ensinar fosse o que fosse a um hipotético miúdo (excepto a título preventivo, para que o petiz aprendesse, com o susto, os resultados da ignorância e do fanatismo). De matarruanos socialistas aos transtornados do BE, passando pelo espectacular Nogueira sindical, juntou-se aqui o exacto tipo de gente de que uma família consciente mantém a prole à distância. Puros resíduos, desgraçadamente não recicláveis. O bolor dos Grandes Educadores tem um cheirinho a sacristia que nem vos digo. Eles dizem.
Resta um pormenor: o homem que impediu os filhos de engolir a gosma do “pensamento” único e que, sozinho, enfrenta as garras prepotentes deste Estado chama-se Artur Mesquita Guimarães. Vive em Famalicão e é um raríssimo herói. E, ele sim, um cidadão a sério.