Entre os livros mais marcantes das duas últimas décadas encontramos O ano do pensamento mágico, da jornalista e escritora Joan Didion sobre a morte do marido, o também escritor John Gregory Dunne. O livro promove uma reflexão intelectual sobre a dor e o luto, num estilo que impressiona pelo esforço de analisar fria e racionalmente o sofrimento que resulta da perda daqueles que amamos. Parte dessa reflexão debruça-se sobre a relação que temos hoje com a morte, o mesmo é dizer, a dificuldade que demonstramos em lidar com a morte. Didion recorre aos trabalhos de Philippe Ariés, que assinala uma revolução, a partir de 1930 e na maioria dos países ocidentais, nas atitudes aceitáveis perante a morte: “A morte, tão omnipresente no passado que era algo familiar, seria apagada, desapareceria. Iria tornar-se vergonhosa e proibida.”; e de Geoffrey Gorer, que descreve esta rejeição como resultado da pressão crescente para o novo dever ético: “divertirmo-nos”.
A morte suscitou sempre incompreensão e talvez tenha gerado, por isso, o fenómeno religioso, como narrativa que permitia dar sentido à vida. Assim, não terá sido por acaso que a nova relação do homem moderno com a morte tenha acontecido após o decreto nietzschiano de que deus está morto. Em A sociedade do cansaço, Byung-Chul Han estabelece uma segunda relação a partir de Zaratustra: com a morte de deus, a saúde torna-se a nova deusa. O mesmo é dizer: “Se houvesse um horizonte de sentido para lá da vida nua, a saúde não se teria absolutizado desta forma.” Como perdemos esse sentido e a vida se tornou apenas isto, então ela deve ser prolongada ao máximo, preservada ao máximo, mantendo à máxima distância o momento final.
Este tornou-se o novo paradigma da sociedade moderna, marcado por uma obsessão sanitária, que recusa não só a morte, mas também a dor. Em A sociedade paliativa, o mesmo Han diz-nos:
“Hoje, as pessoas devem sofrer da ‘síndroma da princesa e a ervilha’. O paradoxo desta síndroma da dor consiste no facto de se sofrer cada vez mais com cada vez menos. A dor não é uma grandeza verificável, mas uma sensação subjetiva. As expectativas crescentes da medicina, a par da falta de sentido da dor, fazem com que mesmo pequenas dores pareçam insuportáveis. E não temos relações de sentido, narrativas, instâncias ou objetivos superiores capazes de envolver a dor e de a tornar suportável. Uma vez desaparecida a ervilha que causa dor, as pessoas começam a sofrer com colchões macios. O que dói é precisamente a falta de sentido persistente da própria vida.”
Este livro é escrito em contexto pandémico, mas a sociedade paliativa e sanitária já estava sedimentada. No final do século XX, a obsessão com uma alimentação saudável já tinha sido reconhecida como distúrbio psicológico – recebendo, oficialmente, uma designação: ortorexia. Os livros sobre alimentação, saúde e beleza multiplicaram-se nas prateleiras das livrarias, ao mesmo tempo que iam surgindo estudos sobre pessoas dependentes de exercício físico. Na última década, proliferaram os equipamentos digitais e respetivas aplicações, que se oferecem para monitorizar todo o tipo de informações sobre o nosso corpo e a nossa saúde, num heterodiagnóstico que se simula de autodiagnóstico. E o espaço público encheu-se de mensagens irrealistas sobre juventude e beleza, como se fosse possível imortalizarmo-nos nesse momento de ouro. A constante mensagem de Cristiano Ronaldo sobre a importância de uma boa alimentação, exercício físico e estilo de vida saudável é um bom exemplo do novo paradigma.
Será este o último homem nietzschiano? De facto, a sociedade moderna multiplicou as possibilidades de uma existência de conforto e a tecnologização crescente contém a promessa de uma vida radicalmente nova. É este o projeto transhumanista: a passagem de um corpo biológico para um corpo melhorado, capaz de superar a dor, a doença, o envelhecimento, a morte. Afinal, como sugere o transhumanista David Pearce, quem quer viver com dor e doença? E quem não quer viver jovem, feliz e para sempre?
Politicamente, este paradigma clarificou-se nos dois últimos anos ao demonstrar como estamos cada vez mais predispostos a sacrificar liberdade, direitos e, sobretudo, dignidade na luta contra a doença. Pedro Simas, uma das poucas vozes sensatas do nosso espaço público nos últimos dois anos, acredita que regressaremos tranquilamente à vida de sempre, segurando a vitória de as democracias se terem revelado tão capazes de lidar com o vírus como os regimes mais autoritários. Mas não é difícil ser-se menos otimista: basta pensar nos países que considerávamos democráticos e que entraram em derivas totalitárias assustadoras. Ou no modo como a maioria da população tem aceitado e apoiado muitas das medidas que nos colocam no limite dos valores constitucionais liberais, ao mesmo tempo que acusa de negacionismotodos aqueles que ousam questionar a sua legitimidade e necessidade.
De facto, não foi necessário transformar os países europeus em regimes de tipo chinês. E não foi necessário porque o novo paradigma da obsessão sanitária já nos tinha predisposto a aceitar quase tudo o que é apresentado como visando a nossa saúde – seja o combate ao sal, ao açúcar, às carnes vermelhas, aos germes, às bactérias, ao mar frio e às brincadeiras na terra. E, claro, ao tabaco – uma obsessão que se traduz agora na pretensão, por parte do governo da Nova Zelândia, de proibir totalmente o tabaco para quem tenha nascido depois de 2008, medida já elogiada em Portugal.
Eis a obsessão sanitária do último homem: “This is a historic day for the health of our people”, afirmou a ministra da saúde neozelandesa, simbolizando o fardo que vamos deixando aos mais novos, escondidos em máscaras e com medo de tudo. E talvez seja por isso que se tenha discutido muita coisa durante a campanha eleitoral, mas não a gestão política da pandemia. E que, independentemente dos resultados de ontem e dos acordos pensados a partir de hoje, seja pouca a esperança de que a obsessão com testes, certificados e doses de reforço contínuas termine em breve.