Esta semana, António Costa resolveu recordar as “páginas” que já teria virado em seis anos de governo. Eram três: a da “austeridade”, a da “pandemia”, e agora, em vias de ser voltada, a da “guerra”. Num país que lê pouco, talvez seja alguma coisa ter virado duas páginas e estar a virar uma terceira. Mas há uma página que António Costa nunca há-de virar, e que é a mais importante de todas. É a página em que estamos há quase trinta anos. É a página em que, a cada ano, ficamos mais pobres em relação à União Europeia. É a página em que a dívida do Estado ultrapassou todos os máximos. É essa mesma: a página do poder socialista.
Chega a ser comovente ainda haver quem peça ou espere que António Costa, agora em regime de maioria absoluta, faça “reformas”. Terão alguma ideia do que são as “reformas”? As “reformas” são uma diminuição do poder do Estado sobre os indivíduos, as famílias e as empresas: do poder de os expropriar, constranger e dirigir. Esse poder é, hoje, o grande instrumento através do qual o Partido Socialista manda na sociedade portuguesa. É com esse poder que o PS selecciona os grupos que lhe interessa favorecer como eleitores. É com esse poder que o PS garante a sua permanência no governo. Fazer reformas é reconhecer à sociedade capacidade para se auto-regular e aos indivíduos, famílias e empresas, o discernimento e a responsabilidade necessários para tomarem conta de si e contribuírem para o bem estar e a coesão social. Tudo isso, porém, significaria reduzir o poder socialista. Nunca, por isso, o PS fará “reformas”.
À oligarquia socialista, o poder que exerce através do Estado ainda não parece suficiente. Daí, a promoção da agenda woke, que autoriza o governo a intimidar e a perseguir um número crescente de pessoas, como fez à família Mesquita Guimarães. O PCP e o BE auxiliaram o PS nesse projecto, mas é preciso ser muito ingénuo para acreditar que a governação dos últimos sete anos teria sido fundamentalmente diferente se os socialistas já dispusessem de uma maioria absoluta no parlamento. O PS não precisa da extrema-esquerda para perceber o que lhe interessa: agravar o peso do Estado sobre a sociedade. Por isso, como a IL descobriu ontem, as “cercas sanitárias” não passam só à porta do Chega.
O controle socialista da sociedade tem um custo: medimo-lo pelo empobrecimento relativo do país, ou pela emigração dos jovens diplomados. Nos próximos anos, continuará a fazer-se sentir. Por isso, António Costa nunca se calará com as páginas que virou. Há-de continuar a lembrar a austeridade, a pandemia e a guerra deste ano, não só para inventar sucessos, mas para baixar as expectativas. Desde 2015, que a memória do ajustamento de 2011-2014 lhe tem servido como contraste para engrandecer os poucos euros ou cêntimos dos seus aumentos de salários e pensões. A esse respeito, porém, talvez agora as coisas lhe possam começar a correr de outra maneira.
Porque não é só António Costa que vira páginas. O mundo também de vez em quando vira a sua página. E uma das que parece estar a virar é a da vida e do dinheiro baratos. A página seguinte chama-se inflação. Nos EUA, a taxa de inflação já é a mais alta desde há quarenta anos. Em Portugal, onde a vaga de inflação dos anos 1970 custou mais tempo a achatar, é a pior desde 1994. O poder socialista foi contemporâneo dos juros baixos e dos preços estáveis. Pôde assim endividar-se para compensar o marasmo económico, e fazer muitos portugueses conformarem-se com a estagnação de rendimentos. É provável que essa época tenha passado. A actual inflação é mais estrutural do que conjuntural, isto é, não se deve simplesmente à pandemia ou à guerra, mas aos excessos monetários dos bancos centrais durante as últimas décadas. Se for assim, os aumentos de 665 para 705 do salário mínimo, ou de 0,9% dos salários da função pública, que Costa exibe como medalhas, vão começar a parecer a mesma página de perda de poder de compra e de declínio social. Uma página que António Costa nunca poderá virar.