Dois acontecimentos marcaram o dia de ontem: a nota “Celebrar e viver a fé em tempo de pandemia”, da Conferência Episcopal Portuguesa, e a manifestação dos trabalhadores da restauração, no Porto.

Estes dois factos estão relacionados, não só pela coincidência de ambos terem ocorrido na mesma data, mas também por guardarem uma certa analogia. Com efeito, a Igreja e a restauração são, mais uma vez, vítimas das medidas alegadamente sanitárias do Governo e realizam actividades similares: a restauração ocupa-se da alimentação do corpo, enquanto a Igreja cuida da alimentação da alma.

No seu início, a Nota da Conferência Episcopal manifesta a preocupação do episcopado português: “Os Bispos de Portugal vivem na fé e na confiança a presente situação de pandemia, fazendo suas as dificuldades e sofrimentos dos concidadãos. Em particular, veem preocupados o alastrar da Covid-19, com riscos agravados para a vida e saúde de tantos irmãos e irmãs. Dada a gravidade da situação, apelamos a todos para que adotem comportamentos responsáveis nos mais diversos setores da sua vida e atividade e respeitem as determinações das autoridades constituídas, com o objetivo de travar e controlar a vaga de contágios. Em particular, este comportamento responsável deve ser vivido após as celebrações litúrgicas mais festivas (Batizados, Comunhões, Crismas e Casamentos), evitando sempre as concentrações fora das igrejas e nas próprias casas”.

É muito salutar que os Bispos de Portugal estejam tão próximos dos que mais sofrem com a presente pandemia e, nesse sentido, a sua primeira palavra seja para recordar a necessidade e urgência de todos, sobretudo os fiéis, principais destinatários desta Nota, adoptarem “comportamentos responsáveis” e respeitarem “as determinações das autoridades constituídas, com o objetivo de travar e controlar a vaga de contágios”.

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Como declaram que “vivem na fé e na confiança a presente situação de pandemia”, estas palavras só podem ser entendidas, na medida em que esta situação a todos afecta e interpela, como um exigente convite à oração, bem como um apelo à conversão de todos. Como é óbvio, não é incumbência da Igreja secundarizar o discurso político, nem sublinhar as recomendações sanitárias: a sua principal missão, que só ela pode cumprir de forma satisfatória, é zelar pela salvação das almas, como aliás sempre aconteceu em situações análogas.

É muito oportuno que esta Nota da CEP esclareça que a obrigação da missa dominical, que gravemente onera a consciência de todos os fiéis, pode ser cumprida na véspera à tarde, a chamada missa vespertina, mas não na manhã de sábado. “A lei canónica alargou o tempo útil para a participação na Missa de preceito para a tarde precedente. Trata-se de uma lei geral da Igreja que só pode ser alterada pela Sé Apostólica”. Assim sendo, as medidas agora adoptadas pelo executivo, não obstante a sua meritória intenção, colidem com uma obrigação grave de todos os fiéis católicos de que, por decorrer da aplicação de uma lei geral da Igreja, nem os bispos podem dispensar.

Recorde-se que, dada a actual situação sanitária, a Igreja tudo fez para evitar a propagação da epidemia e que é o Governo que, com as suas actuais medidas, está a potenciar as ocasiões de contágio. Com efeito, para evitar concentrações, a Igreja, com grande solicitude e sacrifício dos padres, multiplicou as missas dominicais, para que os fiéis se distribuíssem por mais horários e celebrações, no sábado à tarde, domingo de manhã e domingo à tarde. Mas agora o Governo, com esta contraditória medida, exige que todos os fiéis se concentrem nas celebrações eucarísticas das manhãs de domingo. Não está em causa a óbvia necessidade de medidas contra a pandemia, que há que apoiar e reforçar ante o preocupante aumento do número de casos de pessoas infectadas, internadas e falecidas por este vírus, mas sim a arbitrariedade dos critérios adoptados pelo Governo, em detrimento da liberdade religiosa dos fiéis.

Em boa hora a CEP recorda que “a impossibilidade de cumprir o preceito dominical não dispensa ninguém – nem mesmo quem não pode ou não deve sair de casa por motivos alheios à sua vontade – de cumprir o mandamento divino de santificar o dia do Senhor”. Com efeito, também os acamados, os presos e os embarcados, entre outros, estão impossibilitados de participar na Eucaristia dominical, mas não de viver o dia do Senhor, que há-de ser sempre, para os fiéis, quaisquer que sejam as suas circunstâncias, um dia de especial acção de graças a Deus – eucaristia significa, precisamente, acção de graças – e de particular vivência da oração e da caridade cristã.

Para a atípica vivência do dia do Senhor sem Missa, os Bispos portugueses sugerem várias modalidades: “realizar com amor os serviços da convivência familiar, sem descurar o conveniente repouso do corpo e do espírito; dedicar um tempo razoável à oração pessoal e, se possível, em família, com a leitura da Sagrada Escritura e outros exercícios de piedade; unir-se espiritualmente, se possível, a alguma celebração eucarística transmitida pela rádio, televisão ou internet; estabelecer contacto, pelos meios disponíveis, com familiares, amigos e conhecidos, privilegiando os que mais sofrem a doença ou a solidão; estar solidariamente atentos às necessidades e alegrias dos vizinhos”.

É muito justa a referência ao “trabalho dedicado e criativo dos sacerdotes, diáconos e agentes pastorais, ao serviço das comunidades”. Sem dúvida que esta justíssima homenagem é extensiva aos leigos católicos que, como profissionais da saúde, estão na linha da frente deste combate e são também, pelo heroico exercício do seu sacerdócio comum, presença de Cristo e da sua Igreja junto dos que mais sofrem.

Uma palavra final, para manifestar solidariedade com os trabalhadores da restauração, que ontem percorreram as ruas da cidade invicta. Nenhum cristão, nem nenhum cidadão, pode ficar indiferente ante o sofrimento de tantos homens e mulheres que temem pelo seu posto de trabalho e sofrem a ameaça do desemprego e, talvez, da miséria e da fome. A sua angústia explica, embora não justifique, os excessos verificados nessa manifestação. Não é preciso voltar a referir a citada analogia para expressar o desejo de que também os cristãos – leigos, sacerdotes e bispos – tenham, pelo menos, igual empenho em defender, mas não pelos mesmos meios, o seu inalienável direito à Eucaristia dominical, que não é um dispensável capricho, mas o único alimento indispensável para evitar a miséria e a fome espiritual, “porque o pão de Deus é o que desceu do céu e dá a vida ao mundo” (Jo 6, 33).