1 A cultura do herói

Em A Mancha Humana, Philip Roth entrega ao professor de estudos clássicos, Coleman Silk, a famosa formulação sobre o início da literatura europeia:

“Sabem como começou a literatura europeia? Com uma discussão. Toda a literatura europeia nasce de uma briga. (…) E acerca de que discutem essas duas violentas e poderosas criaturas [Agamémnon e Aquiles]? De uma coisa tão primitiva como uma rixa de taberna. Discutem por causa de uma mulher.”

Ao estilo rothiano, o argumento desenvolve-se até chegarmos “à dignidade fálica de um possante príncipe guerreiro”. Mas, como em quase tudo na vida, importa mais como o livro termina do que como começa. Será possível esquecer o final de Mil novecentos e oitenta e quatro?

“Mas estava tudo bem, tudo bem, a luta chegara ao fim. Alcançara a vitória sobre si próprio. Amava o Grande Irmão.”

Ou o de Submissão?

“Tal como acontecera, alguns anos antes, com o meu pai, também agora se abriria perante mim uma nova oportunidade; e seria a oportunidade de uma segunda vida, sem grande relação com a vida anterior. Não teria nada de que me arrepender.”

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Ora, se a literatura europeia começa com uma discussão por causa de uma mulher, a Ilíada termina com um funeral: “E assim foi o funeral de Heitor, domador de cavalos”.

Poderia parecer estranho que uma história contada para louvar a guerra que os Aqueus venceram termine com o funeral de um troiano, ainda mais o responsável pela morte de Pátroclo, vingada por Aquiles. Mas Heitor é, na verdade, o grande herói da Ilíada – admirado por todos, gregos e troianos, pela sua coragem, disciplina e honestidade (tão distante do orgulhoso Aquiles, do violento Agamémnon ou do ardiloso Ulisses). Quando Homero canta a Ilíada, canta todos os heróis, mas Heitor acima de todos, consagrando para as gerações seguintes o modelo de cidadão.

A literatura europeia começa, assim, não só com mulheres e sexo, mas sobretudo com a dignidade heroica daqueles que admiramos e que nos fizeram, ao longo de três mil anos, erguer estátuas e nomear ruas. Queremos recordar esses heróis porque, de múltiplas formas, nos legaram algo que valorizamos.

2 A cultura da vítima

Numa perspetiva nietzschiana, a corrupção da cultura de heroicidade começou com a adoção dos valores do judaísmo e do cristianismo, que representariam aquilo que Nietzsche designa como a moralidade do escravo. (As suas ideias relativas aos conceitos de mal, culpa e ressentimento, úteis para compreender os nossos dias, terão de ficar para outro artigo.) O argumento de Nietzsche pode ser, naturalmente, contestado, mas ele parece ter sido capaz de captar uma transformação que, no século XXI, se tornou evidente: vivemos hoje numa cultura que coloca a vítima no cerne da reflexão política. Como chegamos até aqui?

Muitos fatores parecem ter contribuído para essa transformação, mas um dos mais relevantes resulta da viragem identitária que foi empreendida pelo pensamento identitário ao longo da segunda metade do século XX. Essa viragem identitária traduz-se na ideia de que o modo como percecionamos o mundo e a realidade depende da nossa identidade e, por isso, a história humana desenrola-se a partir das relações de luta e poder entre diferentes identidades, das quais resultam um grupo opressor e grupos oprimidos. Os oprimidos – as vítimas da história – foram sempre silenciados, excluídos da história, pois esta é contada pelos vencedores. Importa agora, de acordo com a lógica identitária, dar a voz às vítimas para que possam obter a reparação e a compensação pelos danos passados.

A transformação que coloca a vítima no cerne da política justificar-se-ia, então, por razões de justiça (e é por isso que a narrativa identitária se torna tão sedutora): se a história tem sido contada pelos vencedores, que foram silenciando as vozes dos grupos oprimidos, os princípios de justiça exigiriam que o protagonismo seja agora dado aos grupos historicamente silenciados.

Porém, esse processo de reconhecimento de injustiças acabou por estabelecer o mais perigoso de todos os princípios: o de que só a voz da vítima é autêntica pelo que apenas a vítima teria verdadeira legitimidade política. Nessa medida, as políticas identitárias têm transformado os nossos sistemas democráticos em sistemas vitimocráticos.

3 As políticas de vitimização

Em Left is not woke, Susan Neiman formula esta nova fonte de legitimidade do seguinte modo: o modelo de vitimização substitui a velha ideia de que as reivindicações políticas se baseiam no que fizemos ao mundo por uma versão em que as reivindicações políticas se passam a basear naquilo que o mundo nos fez. Assim, o reconhecimento social e político deixa de decorrer do nosso contributo para a sociedade para passar a ser entendido como nos sendo devido independentemente daquilo que fazemos. E mais importante ainda: passa a centrar-se no presumível sofrimento que nos foi infligido e do qual somos os únicos avaliadores (isto, claro, se não pertencermos ao grupo opressor, i.e., homens brancos cis heterossexuais).

Esta mudança gera dois movimentos igualmente perversos. O primeiro deles traduz-se no estímulo a que nos percecionemos e apresentemos como vítimas – é dessa forma que asseguramos a nossa legitimidade política; e dentro desse paradigma de vitimização, importa mostrar que somos mais vítimas do que os outros. É a chamada corrida pelo estatuto de vítima, sempre acompanhada pela competição para se ser a vítima-maior, levando a que se amplifique artificialmente o sofrimento, e que dispensa a assunção de qualquer responsabilidade pessoal quanto às condições atuais.

O segundo movimento acontece por parte daqueles que não têm material de vida suficiente para reclamar o lugar de vítima (ou porque não pertencem a grupos identitários historicamente oprimidos ou porque, apesar de pertencerem, têm privilégios sociais e materiais evidentes). Como diz Claire Fox, em “I STILL find that offensive”, estes “tentam muitas vezes compensar com uma empatia excessiva em relação aos grupos de vítimas, como se o sofrimento dessas pessoas lhes pudesse passar alguma credibilidade”. E seria isto a explicar “a tendência crescente de alguns liberais especialmente privilegiados para se sentirem particularmente ofendidos em nome de grupos de vítimas e disfarçarem isso como uma forma de ativismo político de justiça social”.

É da confluência destes dois movimentos que têm resultado as políticas de vitimização adotadas nas últimas décadas no ocidente, e de que é exemplo entre nós a chamada Lei da Paridade. E conforme a agenda racial vai sendo importada dos Estados Unidos para a Europa, começam a surgir propostas para outro tipo de quotas, como as étnico-raciais. Foi o que fez recentemente Francisca Van Dunem, conforme noticiou o Público, para que sejam introduzidas quotas para minorias racializadas (sic), não só no ensino superior como também nas forças de segurança e na função pública. Vou reservar, por agora, o facto de, mais uma vez, a elite política confundir a realidade da zona metropolitana de Lisboa com o resto do país, para me centrar na argumentação apresentada: estas medidas serviriam “para criar algum apaziguamento social”, na medida em que “existem hoje bolsas de grande revolta” entre estas minorias. Encontramos neste argumento dois erros que não podem ser menosprezados.

O primeiro erro (que parece decorrer de malícia intelectual) resulta da defesa de que medidas de discriminação positiva “criam apaziguamento social”. Em sentido contrário, o que os dados mostram é que, nos países em que este tipo de medidas foi adotado, a paz social diminuiu e as sociedades passaram a sofrer de uma forte polarização política e social. Basta olhar para o que aconteceu nos Estados Unidos ou no Brasil. E isso não constitui uma surpresa: o objetivo das políticas identitárias é precisamente dividir a sociedade e fazer com que nos percecionemos uns aos outros como inimigos.

O segundo erro prende-se com o facto de a abordagem identitária olhar para os problemas sociais exclusivamente a partir do fator identitário, quando, na verdade, as razões para esses problemas estão quase sempre para lá desse modo míope de ver realidade. E no caso português isso é particularmente evidente: se não há paz social entre nós, tal acontece porque o país tem muito pouco a oferecer à maioria dos portugueses, e não só a certas identidades; e se há revolta social, ela não está confinada a bolsas: o descontentamento é generalizado e resulta de anos de desgovernação que têm prejudicado a maioria dos portugueses, e não só certas identidades. Bastaria dar um passo para fora da bolsa privilegiada em que a elite política vive para perceber isso – mas a maior preocupação hoje parece ser a de seguir a moda da vitimização identitária.