1 Quem é Jordan Peterson?

Para quem acompanha as lutas culturais que dominam o espaço público atual, o psicólogo canadiano Jordan Peterson não será um desconhecido. O seu canal de Youtube, onde divulgava algumas das suas aulas na Universidade de Toronto, era já muito popular, mas foi a sua oposição à Bill C-16, que alterou o Canadian Human Rights Act, que o tornou uma das figuras intelectuais mais relevantes da atualidade.

Esta legislação, aprovada em 2016, acrescentou “a identidade ou expressão de género” como uma das áreas protegidas de discriminação, com implicações a nível penal. Mas Peterson considerou que a nova lei entrava no domínio do discurso compulsivo, criminalizando, nomeadamente, quem se recusasse a utilizar os pronomes escolhidos por pessoas trans ou não binárias.

Neste cantinho à beira-mar plantado, é possível que nem toda a gente conheça a loucura que anda em torno do uso dos pronomes no mundo anglo-americano, e que passa por se ter tornado socialmente aceitável a escolha individual dos pronomes pelos quais se quer ser tratado. O tema foi objeto de um artigo do The New York Times, que explica não só a utilização dos pronomes they/them (o mais popular), mas também dos neopronouns (novos pronomes), que podem passar por sons sem qualquer significado (como ze/zim) ou a utilização de palavras ligadas ao mundo animal. (Para compreender melhor a insanidade que prolifera nas redes sociais, recomendo os vídeos de Arielle Scarcella e Blair White.)

De acordo com Peterson, a nova legislação traduzir-se-ia numa ferramenta orwelliana que nos obriga a falar de determinada maneira e nos debates em que participou procurou denunciar a dimensão autoritária e totalitária das políticas identitárias.

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A popularidade de Peterson seria depois consolidada com a publicação do seu segundo livro em 2018 – 12 regras para a vida: um antídoto para o caos – e que o levou a inúmeras entrevistas na Europa: uma dessas entrevistas, ao Channel 4 News, constitui um exemplo da sua capacidade argumentativa e chegou às 7 milhões de visualizações num só mês (conta já com mais de 44 milhões de visualizações). Os trinta minutos de entrevista permitem-nos conhecer as suas ideias principais: a importância do crescimento emocional, a defesa da responsabilidade individual, a função basilar da liberdade de expressão e do risco de ofender, o lugar da biologia e da natureza na vida humana.

Há uma dimensão inevitavelmente terapêutica na abordagem de Peterson (afinal, é psicólogo clínico), e muitas vezes as suas palestras tornam-se em algo parecido com terapia de casal (o casamento ocupa um lugar essencial nas suas reflexões), mas há para lá disso um pensamento estruturado e filosoficamente relevante para pensarmos os nossos dias: trabalhando na tradição de Carl Jung, Peterson tem procurado identificar ferramentas que nos permitam lidar com o esvaziamento de sentido e de referências do mundo moderno.

Se a modernidade se caracteriza pela emancipação de todas as referências mitológicas e simbólicas – o desencantamento do mundo, como disse Max Weber –, somos lançados num mundo vazio de sentido (daí que seja tão relevante o papel das ideologias, que pretendem dar uma significação concreta à vida). Ora, Peterson faz o caminho inverso. Procura recuperar o sentido, recusando a ideologia: estas já provaram os seus perigos e a sua inutilidade; mas as antigas narrativas ainda são úteis. Os mitos antigos, as referências religiosas, os textos bíblicos comportam lições intemporais e podemos retirar dessas histórias importantes lições para encontrar o equilíbrio entre o caos e a ordem excessiva.

2 A coragem de falar

Nenhuma destas ideias seria particularmente polémica não fosse estarmos hoje num ambiente hostil ao pluralismo intelectual. A crítica de Jordan Peterson à Bill C-16 foi considerada transfóbica e as suas reflexões sobre a igualdade de resultados consideradas promotoras de políticas discriminatórias. O facto de não se subjugar ao discurso politicamente aceitável tornou-o um alvo para o movimento woke, simbolizado pelo protesto dos membros mais novos da editora Penguin Random House contra a publicação do seu último livro.

Mas o caso mais absurdo talvez seja o de Lindsay Sheperd, que foi moralmente assediada por membros da Universidade onde trabalhava por ter promovido na aula um debate em torno dos pronomes de género neutro a partir de um debate em que Peterson participava (e sim, as instituições criadas no mundo anglo-americano para lidar com o assédio sexual tornaram-se mecanismos pidescos de denúncia de ideias politicamente erradas – algo pouco considerado entre nós quando se discute a necessidade de as nossas universidades criarem canais de denúncia). A salvo está Cristiano Ronaldo, que foi criticado por ter publicado nas redes sociais uma fotografia com “o amigo” Jordan Peterson, porque Ronaldo pode tudo. (Peterson explicaria mais tarde o seu encontro com o português em entrevista a Piers Morgan.)

Nos últimos anos, tenho procurado denunciar as tentativas de condicionar o discurso público que vêm ocorrendo no mundo anglo-americano e que pretendem ditar a sua visão da realidade, reivindicando uma posição moral de autoridade (o facto de estarem woke). A partir de plataformas digitais, esses ativistas impõem a sua agenda, sem admitir contraditório nem discussão, e tentam silenciar as vozes incomodativas. Nesse clima de tensão, é preciso coragem para discordar e pagar o preço – e Peterson pagou um preço elevadíssimo durante os dois anos (2019 e 2020) em que esteve muito doente. Mas parece ter saído desse processo mais forte: juntamente com outras figuras de peso, lançou recentemente a Alliance for Responsible Citizenship (ARC); e o seu terceiro livro – Para além da ordem: 12 novas regras para a vida – foi publicado em 2021. Peterson esteve no Porto para a sua divulgação no dia 25 de abril, onde milhares de pessoas o ouviram em silêncio durante mais de uma hora.

E o que verdadeiramente importa é isto: não precisamos de concordar com tudo o que Peterson diz ou pensa (ou sequer parte). Mas não podemos deixar de admirar a sua coragem de lutar para que os bárbaros não triunfem. É a mesma coragem de falar que marcou a vida de Paulo Tunhas, e por isso fará muita falta.

P.S.: A convite de Francisco Assis, estive na conferência Novas Formas de Participação Democrática organizada pelo Conselho Económico e Social. Na declaração que encerrou a conferência, o Presidente do CES deixou uma ideia que parece hoje esquecida: não é tarefa dos políticos higienizar o espaço público – e isto por várias razões, mas sobretudo porque quem arroga essa posição de superioridade moral tende a considerar que a sua tarefa não tem fim. Em tempos estranhos, dizer coisas sensatas torna-se um ato de coragem.