A minha querida avó, Cecília de seu nome, falou-me um dia da importância dos rituais: fazem com que os dias não sejam todos iguais e dão sentido à vida, ao tempo que passa, às pessoas que nos rodeiam. É difícil não nos espantarmos com a sabedoria dos mais velhos. Eles, que nunca foram a geração mais preparada de sempre, sabem muitas vezes antes, e por experiência própria, aquilo que a ciência se esforça tanto por provar.

É verdade que vivemos tempos estranhos e não é impossível que as novas gerações, que serão as mais preparadas de sempre, venham a explicar à própria ciência que ela se tornou obsoleta e já não tem nada de relevante a dizer sobre o mundo. Mas enquanto não chegamos a esse momento, devemos aproveitar os livros e os autores que permitem compreender o que somos, em especial aqueles que não recusam a nossa materialidade biológica e, por consequência, a nossa matriz evolutiva, que guarda a memória dos tempos que não vivemos.

É o que faz Jonathan Haidt, em A mente justa, utilizando os contributos da biologia e da psicologia evolutivas para descrever a natureza dual do ser humano: somos primatas egoístas, mas desejamos ser parte de algo maior e mais nobre do que nós mesmos.

Afastando-se do pensamento evolutivo que, nas últimas décadas do século XX, incidia sobre a nossa natureza egoísta e procurava explicar a obsessão com o “eu”, o individualismo da sociedade norte-americana, o homo economicus, Haidt recorda que o conhecimento mais recente nestas áreas revela que estamos também sujeitos a uma lógica tribal, na medida em que sobrevivemos e evoluímos no interior de grupos. No fundo, tendemos a ser egoístas e competimos diretamente com os membros do nosso grupo, mas estamos evolutivamente preparados para reconhecer a nossa pertença grupal e sermos cooperativos e altruístas por forma a beneficiar aqueles que fazem parte do mesmo grupo.

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Esta formulação – de seleção multinível – permitiria explicar, nomeadamente, por que razão agimos de modo altruísta em relação a pessoas que não conhecemos – algo que o argumento da natureza egoísta tem dificuldade em fazer. Como diz Haidt, “[t]emos a capacidade (sob circunstâncias especiais) de transcender o interesse próprio e de nos perdermos (temporariamente e em êxtase) em algo maior do que nós.”

Sabemos como este tipo de explicação é malquista num mundo que nos tenta impor os valores do globalismo e do cosmopolitismo: as visões grupais estariam relacionadas com todos os crimes cometidos pelo nacionalismo e, por isso, deveríamos abandonar o vocabulário da nação, da pátria e da lealdade ao grupo. Ainda que permita compreender muito do que está a acontecer hoje, aquele tipo de explicação não deve ser aceite. Mas Haidt recusa esta proscrição:

“Seria simpático acreditar que nós, humanos, fomos desenhados para amar todas as pessoas incondicionalmente. Simpático, mas pouco provável de uma perspetiva evolutiva. O amor paroquial – o amor dentro dos grupos –, amplificado pela semelhança, por um sentido de destino partilhado, pode ser o melhor que conseguimos fazer.”

O seu objetivo é então mostrar que

“o nosso grupismo – apesar de todas as coisas feias e tribais que nos obriga a fazer – foi um dos ingredientes mágicos que tornaram possível o avanço das civilizações, que elas cobrissem a terra e vivessem mais pacificamente ao fim de alguns milhares de anos.”

Tal aconteceu porque os grupos estão na origem das comunidades morais, que partilham normas e valores e permitem estabelecer objetivos comuns, oferecendo aos indivíduos um tal sentido de pertença que os leva a lutar, matar e morrer para defender a sua comunidade.

Haidt recorre a Durkheim para descrever o que acontece quando transcendemos a nossa existência individual e nos sentimos parte de um grupo: nesse momento, atingimos uma alegria e um êxtase superior e passamos do reino do profano para o reino do sagrado. Nesses momentos de partilha, a oxitocina é libertada, ligando as pessoas ao seu grupo – e não a toda a humanidade, embora os outros grupos possam beneficiar daquele efeito.

Um dos instrumentos que permite esta transcendência, e que é tão evidente entre nós, é o futebol: há códigos de vestuário, um vocabulário próprio e cânticos que nos elevam a um êxtase coletivo.  Mas mais importante para a nossa história evolutiva é a religião, que não deve ser vista apenas como um conjunto de crenças sobre o sobrenatural, mas deve ser sobretudo compreendida como fenómeno moral. As religiões criam comunidades morais ao promoverem a cooperação no interior do grupo, desincentivando o nosso lado egoísta, disciplinando as nossas ambições e estimulando o sentimento de pertença e a alegria tribal.

Quando nos envolvemos em rituais religiosos, a sensação de pertença é estimulada e sentimos uma alegria especificamente grupal. Não é por isso de estranhar que tantas pessoas afirmem sentir-se mais felizes na época natalícia, que sintamos que as cidades ficam mais bonitas com as decorações de Natal e que as casas ficam mais acolhedoras com o presépio e o pinheirinho. Tudo isso leva-nos a transcender o domínio da individualidade e é, provavelmente, uma das razões que torna o mês de setembro tão cheio de natalidade (do que sou, aliás, exemplo, com o devido agradecimento aos meus queridos pais). Sentimo-nos mais próximos da família, mesmo com todos os conflitos que a própria ideia de família comporta, mas também mais próximos daqueles que fazem parte da nossa comunidade. É também por isto que é tão importante a semelhança moral dentro da comunidade (mais sobre isto em breve).

Que as cidades, as empresas, as escolas ou as pessoas se queiram libertar de rituais partilhados em nome da inclusão, do respeito, da laicidade ou do progresso é, assim, não só culturalmente empobrecedor, como biologicamente errado: sem rituais partilhados ficamos reduzidos a meros indivíduos, infelizes, egoístas e em permanente competição.

Votos de um Feliz e Santo Natal.