É significativo dos nossos tempos que uma das exigências políticas mais populares dos últimos anos, no mundo anglófono, tenha começado com o ativista sul-africano Chumani Maxwele a despejar excrementos humanos em cima da estátua de Cecil Rhodes para exigir a sua remoção do campus da Universidade de Cape Town (UCT). Recapitulemos: é significativo dos nossos tempos que uma das exigências políticas mais populares seja o derrube de estátuas e que tenha começado com cocó. O futuro fará as suas avaliações.

A verdade é que Chumani Maxwele atraiu vários estudantes para o protesto que marcou o mês de março de 2015 e que viria a ser conhecido como Movimento Rhodes Must Fall (RMF), repetido em Oxford e suscitando protestos semelhantes em campi universitários norte-americanos. Encontramos hoje trabalhos académicos que se debruçam sobre o Fallism (derrubismo?) como teoria política, que combinaria elementos do pensamento descolonizador, do pan-africanismo, da consciência negra e do feminismo radical negro.

A controversa figura de Cecil Rhodes, com a sua doutrina imperialista e um legado entendido como tendo lançado as bases para o Apartheid, foi sempre alvo de polémica, sendo legítima a discussão em torno da sua presença simbólica na UCT (a estátua seria removida um mês depois dos protestos). Mas como é dito no Manifesto do RMF, embora “a estátua seja o ponto de partida natural deste movimento”, “a sua remoção não significa o fim, mas o princípio do longo processo em atraso de descolonizar a universidade”.

Mas o que é isso de descolonizar a universidade?

1Descolonizar a universidade

Para além de exigir a remoção de todas as estátuas e placas que celebram a supremacia branca, o Movimento RMF apresentou no seu manifesto uma lista de medidas a adotar pela universidade. Vejamos algumas delas:

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  • implementar um currículo centrado em África e nos subalternos, tratando os discursos africanos como ponto de partida e analisando as tradições ocidentais apenas se forem relevantes para a experiência africana;
  • alterar radicalmente a representatividade dos professores negros;
  • rever as limitações de acesso a posições seniores para académicos negros, questionando a noção de “excelência académica” (que é usada para limitar a progressão de académicos e estudantes negros dentro da universidade);
  • aumentar a representatividade de académicos negros nos órgãos de decisão (que, dominados por homens brancos, perpetuam o racismo institucional);
  • reavaliar os critérios que determinam as áreas de investigação (passando de áreas centrais para a branquitude para áreas que são relevantes para a vida das pessoas negras);
  • introduzir um currículo e áreas de investigação relacionados com justiça social e a experiência das pessoas negras;
  • adotar uma política de admissões que use explicitamente a raça como indicador de desvantagem, atribuindo prioridade a candidatos negros.

Estas exigências revelam como a UCT aparece aos olhos dos manifestantes como uma universidade impregnada de uma história, currículos e professores brancos – de acordo com um privilégio branco que desumaniza as pessoas negras: “Esta desumanização é uma violência imposta apenas contra pessoas negras por um sistema que privilegia a branquitude.”

A universidade surgiria, assim, não como um espaço livre de produção de saber e conhecimento, mas como um local de violência – ideia que encontramos também em Grada Kilomba, académica ativista e artista portuguesa:

“[A] academia não é um espaço neutro nem mero espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e saber, é também espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a.”

Essa violência aconteceria não só de forma simbólica (com a existência de estátuas que celebram figuras ambíguas), mas também com a exclusão sistemática de pessoas negras e de formas de pensar não-brancas das estruturas e instituições académicas.

2O centro e as margens

Para compreendermos este argumento temos de ter em conta uma tríade de autores, que se revelaram essenciais para a consolidação do pensamento pós-colonial:

  1. O primeiro deles é Antonio Gramsci, que se tornou fonte de várias correntes de pensamento, desde os estudos culturais ao pós-marxismo. No que ao pensamento pós-colonial diz respeito, importa considerar as reflexões de Gramsci sobre os subalternos – conceito usado nos seus textos essencialmente para referir o Mezzogiorno italiano, mas que, nos anos de 1980, seria apropriado pelo grupo de estudos sul-asiáticos, o Subaltern Studies Group para denunciar os efeitos do colonialismo. De acordo com Gramsci, os grupos subalternos são sempre vistos pelas elites como bárbaros e patológicos, pelo que a cultura hegemónica cria barreiras para impedir que as suas vozes sejam ouvidas.
  2. A segunda referência incontornável para a crítica pós-colonial é Michel Foucault, em particular as suas ideias sobre as relações entre poder e conhecimento. Para Foucault, aquilo que é considerado conhecimento resulta sempre das relações de poder e da luta pelo poder, i.e., pela possibilidade de produzir discursos. Aqueles que não detêm o poder devem resistir e lutar pela produção de discurso e conhecimento, ou seja, pela possibilidade de fazer ouvir a sua voz.
  3. Em terceiro lugar, importa referir Franz Fanon (autor que revisitaremos em breve), cujas reflexões de cariz psicanalítico contêm duas ideias principais: a essência do colonialismo consiste em negar e recusar a humanidade dos povos colonizados, pelo que cabe ao homem negro resistir e libertar-se da mentalidade branca e afirmar um espaço de interpretação e fala que resulte da sua identidade.

Estes autores e estas ideias estão na base do desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, em particular com Edward Said, que na obra Orientalismo (1978) desenvolve o argumento de que o Oriente é uma categoria inventada pelo Ocidente, que o transforma desse modo num produto do pensamento ocidental; mas também com Gayatri Spivak, que no texto Pode a subalterna tomar a palavra? nos coloca no centro da reflexão sobre a possibilidade de agência dos grupos oprimidos.

Podemos reorganizar todas estas ideias numa imagem que traduz posições de poder: no centro encontram-se os grupos privilegiados, que podem falar e ser ouvidos e determinam as condições da fala e do conhecimento; nas margens encontram-se os grupos oprimidos, silenciados e sem agência, i.e., sem possibilidade de fazer ouvir a sua voz e de produzir conhecimento considerado válido. Notemos como este tipo de imagética é explorado por Boaventura de Sousa Santos quando fala em Epistemologias do Sul e defende o fim do imperialismo cognitivo, imposto pela visão eurocêntrica (a epistemologia do Norte global).

3Descolonizar o conhecimento

Podemos agora avançar na nossa explanação: os estudos pós-coloniais incidem essencialmente sobre questões epistemológicas, i.e., relativas à produção de conhecimento – considerando que essa produção não é neutra, mas está sujeita às mesmas dinâmicas de poder que regulam toda a sociedade. Como diz Foucault (citado por Spivak): “A episteme é o “aparelho” que torna possível a separação, não do verdadeiro e do falso, mas do que não pode ser caracterizado como científico.”

Ora, este argumento tem enormes implicações para o pensamento científico:

  1. A Ciência não seria a procura pela Verdade – ou a tentativa, ao estilo popperiano, de nos aproximarmos progressivamente da Verdade –, mas seria simplesmente o resultado de relações de poder, que determinam que conhecimento deve ser considerado científico (e ocupar o centro) e que conhecimento deve ser relegado para as margens.
  2. Essa repulsão para as margens constituiria aquilo que, em linguagem identitária, se designa por violência epistémica: exerce-se violência porque se elimina a possibilidade de certos grupos serem e se percecionarem como igualmente capazes de produzir conhecimento – e esta teria sido uma das consequências do processo de colonização.
  3. Assim, de acordo com a lógica identitária, aquele conhecimento que, ao longo dos últimos séculos, foi considerado universal, objetivo e neutro resultaria antes de uma identidade específica: a do homem branco, que procurou, desde o século XVII, impor o seu modo de pensar às restantes identidades.

Deste modo, uma descolonização completa e efetiva teria de passar também pela descolonização do conhecimento, reconhecendo que a academia é um espaço de violência e que os critérios usados para a produção de conhecimento devem ser revistos por forma a incluírem outras experiências que foram até agora silenciadas. E embora não se trate de uma consequência necessária e óbvia, para a perspetiva identitária isto significa abdicar de ideias tão caras ao pensamento científico, como os conceitos de objetividade, distanciamento e racionalidade – que são entendidos como traços da branquitude.

Regressemos às Memórias da Plantação, de Grada Kilomba:

“[C]omo académica, dizem-me habitualmente que o meu trabalho sobre o racismo quotidiano tem muito interesse, mas não é realmente científico, uma observação que ilustra a ordem colonial em que residem as/os académicas/os negras/os: “Você tem uma perspetiva muito subjetiva”, “muito pessoal”, “muito emocional”, “muito específica”; “isto são factos objetivos?”. Este tipo de comentários opera como máscara, que nos silencia as vozes mal falamos. Permitem que o sujeito branco volte a posicionar os nossos discursos nas margens, como conhecimento desviante, enquanto os seus discursos se mantêm no centro, como norma. O que dizem é científico, o que nós dizemos não o é:
universal/específico;
objetivo/subjetivo;
neutro/pessoal;
racional/emocional;
imparcial/parcial;
elas/eles têm factos, nós temos opiniões;
elas/eles têm o conhecimento, nós temos experiências.”

Quão estranho parece tudo isto? A verdade é que estas exigências têm vindo a ocupar o espaço académico anglófono e já se começam a sentir na Europa continental. As suas implicações e consequências não podem ser desprezadas e é sobre elas que nos debruçaremos no último texto antes de férias.