1 A política tem alguma coisa a ver com a dignidade humana? Sim, tem. E a dignidade humana tem alguma coisa a ver com direitos e deveres humanos? Sim, tem. E os deveres humanos têm alguma coisa a ver com a fraternidade? Sim, têm. E a fraternidade tem alguma coisa a ver com o amor fraterno? Sim, tem. Portanto, a política tem a ver com o amor fraterno? Sim, tem.

2 Estas perguntas e estas respostas podem parecer excêntricas. Mas a verdade é que elas se referem a uma questão que, desde os fins do séc. XVIII, foi expressamente central nas origens do constitucionalismo moderno: a questão da fraternidade humana. Como se documenta na histórica declaração de direitos humanos da Virgínia (1776) e na divisa da revolução liberal francesa (1789). Bastará lembrar que, na Declaração da Virgínia (de 1776), se diz o seguinte: «all men are equally entitled to the free exercise of religion, according to the dictates of conscience; and that it is the mutual duty of all to practise Christian forbearance, love, and charity toward each other.» E que a divisa que a França retirou da sua revolução liberal, e ainda hoje conserva como sua divisa oficial, é: «liberté, égalité, fraternité». Portanto, de par com a proclamação da dignidade humana e dos direitos humanos, em ambas essas solenes declarações se proclamam os fundamentais deveres humanos com validade “política” original e absoluta, conotando-os expressamente com o «amor» [forbearance, love, charity] na declaração americana, e com a «fraternidade» [fraternité] na divisa da revolução francesa. Assim, o “amor fraterno” é dever constitucional na política, imposto pela dignidade da pessoa humana — que está reconhecida na nossa Constituição por estas palavras: «Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana…».

3 Se dúvidas houvesse, teriam de se confrontar com a letra e o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (DUDH), de 1948, subscrita por todos os povos do mundo — honrosa herdeira e continuadora das duas históricas declarações já citadas. Recorde-se o artigo 1.º da DUDH: «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em [1] dignidade e em [2] direitos. Dotados de razão e de consciência, [3] devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.» “Espírito de fraternidade” não pode entender-se como nada tendo a ver com amor fraterno.

4Note-se uma particularidade: a DUDH não só foi ratificada por Portugal, como além disso foi expressamente recebida na nossa Constituição por via dos arts. 8.º e 16.º. E este último artigo manda interpretar e integrar os nossos preceitos constitucionais de harmonia com a DUDH. Pelo que os nossos fundamentais deveres constitucionais devem ser interpretados e integrados de acordo com a norma da DUDH que, como vimos, manda que todas as pessoas humanas “devem agir umas para com as outras em espírito de fraternidade”.

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5Em boa e irrecusável doutrina, isto é claramente assim, numa perspectiva humanista personalista, designadamente no cristianismo, que sem dúvida está na origem da ideia ocidental da fraternidade universal. Mas também parece irrecusável com base na própria ciência humana. A lei da homeostase, como lei que explica a manutenção e reprodução de todos os sistemas naturais e vitais, constantemente em morte e ressurreição, é a lei da vitória da vida e do amor que prevalece na luta entre a vida e a morte; entre o amor e o ódio. De facto, é evidente que se os seres (sistemas) naturais e sociais se mantêm e reproduzem, é porque neles, e nas relações entre eles, é a vida que vence a morte e é o amor que vence o ódio. Se não fosse assim, tudo teria já morrido no universo ou estaria em agonia.

6 Em conclusão, na medida em que, como criaturas racionais, tomamos consciência das leis da vida, “espirituais” ou simplesmente “científicas”, só podemos e devemos estar do lado da vida e contra a morte; do lado do amor e contra o ódio. Mesmo na política, porque a política é para servir a pessoa humana e a sua dignidade. Sem fraternidade, sem amor humano, a política reduz-se muito friamente na expressão crucial de luta partidária eleitoral pelo poder de governo, numa transacção partidária mercantil. Porque, num mercado partidário eleitoral, os candidatos ao governo prometem eleitoralmente benefícios aos eleitores/governados, mas em troca dos votos que lhes pedem para governar. Não esquecendo as transacções interpartidárias para conseguir ou repartir o governo. Em certos exemplos, estas negociações partidárias, mesmo quando são públicas e nem sempre o são, chegam a ser evidentes casos mercantis: eu dou-te isto, e tu dás-me aquilo, e ambos ganhamos alguma coisa que desejamos.

7Tem portanto inteira razão a Senhora Deputada do partido “Livre”: «a política sem amor é comércio». E (mais uma vez) não tem razão o Senhor Primeiro Ministro António Costa, que respondeu à Senhora deputada afirmando: «a actualização do salário nada tem a ver com amor». Ora, se (na opinião do Primeiro Ministro) a política nada tem a ver com o amor, então é excessivo, por princípio, ter o funcionamento político do Estado em maior consideração moral do que o funcionamento do mercado comercial. O que corresponde à nossa ideia popular acerca da (i)moralidade da política, igual ou pior do que a (i)moralidade dos negócios económicos mercantis.

8O amor humano é o melhor que há no mundo. Se as pessoas humanas não fossem seres amantes entre si, ainda que nas imperfeições e desfalecências do amor, o mundo seria um horror de indiferença e ódio mortais. Se a política não tiver a ver com o amor, então a política não fará parte do melhor que há no mundo. Será esta a opinião do nosso Primeiro Ministro, acerca da nossa política? Talvez não falte, por aí, quem nisso concorde muito com ele.