1 Segundo titulou o jornal Público, o Primeiro Ministro António Costa terá censurado uma iniciativa da Ordem dos Médicos dizendo que «as ordens profissionais não existem para fiscalizar o Estado». Mas então quem fiscaliza o Estado? Só próprio Estado a si mesmo? Portanto o Estado tem direito à privacidade?

2 Esta é uma declaração que revela bem o nível de «educação para cidadania» do nosso Primeiro Ministro. Mostrando que a relação que ele defende entre o Estado e a Sociedade Civil é segundo a clássica e bem conhecida concepção  jacobina e colectivista. Exactamente ao contrário da concepção do constitucionalismo da ONU e das democracias pluralistas baseadas na dignidade da pessoa humana, que é uma concepção liberal, democrática e social.

3 Os únicos titulares da soberania são os cidadãos. Os vários órgãos do Estado, e a Administração Pública, só exercitam por delegação segmentos separados e limitados de poder público soberano — e sempre observando as limitações e garantias constitucionais. Mas a limitação fundamental desse exercício, verdadeiramente a principal, está na reserva absoluta dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos. E, dentre estes direitos fundamentais, os chamados «direitos, liberdades e garantias de participação política», que é como lhes chama a Constituição. Que diz assim, no art. 48.º: «Todos o cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos».

4 Pensar que só os poderes de Estado, devidamente separados entre si segundo o princípio da divisão dos poderes, limitam os poderes do Estado, está certo como um efeito prático e institucional. Mas não como esgotando todo o direito constitucional, porque como direito constitucional tudo depende dos titulares da soberania. Até a própria Constituição.

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5 Todos os cidadãos e todas as instituições (que são um simples prolongamento dos cidadãos, note-se bem), quer sejam de interesse privado quer sejam de interesse público, devem fiscalizar o exercício dos poderes de Estado. Os cidadãos são os titulares originais da soberania; são eles que elegem os que ficam encarregados do exercício de poderes públicos constitucionais, mas nem por isso, depois de os elegerem, ficam esvaziados da sua soberania. Por isso, os poderes de Estado não ficam isentos da fiscalização dos cidadãos.

6 Em vez de a disciplina escolar obrigatória de «educação para cidadania», que o Governo de António Costa autoritariamente encharca com questões que pertencem apenas à ordem cívica e moral dos cidadãos, era bem mais avisado, pelos vistos, que incluísse aí o estudo do constitucionalismo e da Constituição da Terceira República Portuguesa. Para termos futuros Primeiros Ministros constitucionalmente mais esclarecidos.

7 É impressionante como os nossos governantes nos comunicam, sem pudor, o desprezo que têm pelo conceito da democracia que está no art. 2º da Constituição (dedicado ao «Estado de Direito Democrático), onde ela é definida por estas palavras bem claras: «visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa». Mas afinal, se é como diz António Costa, em que é que participam os cidadãos, para além de elegerem os governantes? Se os cidadãos estão sempre a ser suspeitados pelos governantes: como monstrinhos ávidos de lucro, na economia; como seres egoistões e meramente subsidiários na solidariedade social; como maus educadores e sectários na vida escolar e cultural; e como intrometidos na gestão governamental (por exemplo) dos lares de idosos?

8 Se o Estado jacobino, tal como ele é protagonizado pelos socialismos que nos governam, acha que a sociedade civil só serve para ser governada, mas não para ela (também) governar, em que consiste a sua democracia? Afinal, os nossos governantes defendem a democracia que está na Constituição? Ou defendem outra?