É possível que tudo tenha começado em 1917, quando um artista francês apresentou um urinol como peça artística na primeira exposição organizada pela Sociedade de Artistas Independentes, em Nova Iorque. A Fonte, assinada por R. Mutt, não chegou a ser exposta, mas o seu criador tornou-se uma referência incontornável na história da arte contemporânea. A palavra “criador” é, na verdade, ambígua: esta, como muitas outras peças de Marcel Duchamp, consiste num readymade, isto é, um objeto do quotidiano elevado à categoria de objeto de arte. Ficava dado o impulso para a designada arte conceptual, que se desloca do objeto para o conceito que o artista pretende convocar e que permitirá obras tão peculiares como 4’33’’ do compositor John Cage, de 1952; a do artista italiano Piero Manzoni, de 1961, elucidativamente designada Merda d’artista; a instalação de Guillermo Vargas, que apresentou um cão faminto numa galeria em 2007; ou, em 2021, a de Salvatore Garau, que conseguiu leiloar por 15 mil euros uma escultura…invisível.

Dados os exemplos, não é difícil compreender a longa polémica em torno da arte contemporânea e o seu desvio dos tópicos que ocuparam os filósofos da época moderna, com as ideias de belo e sublime a ficarem relegadas para segundo plano. Ainda assim, continuámos no domínio daquilo que designamos como reflexão estética e que tem como alvo o objeto artístico. Não que isso seja fácil de definir. Os estudantes de filosofia sabem que a questão estética central é, precisamente, a de saber o que é a arte. Se, até ao final do século XIX, arte era entendida como representação, desde então as ideias de emoção e forma disputaram a sua definição: estaríamos perante um objeto de arte se ele for capaz de clarificar e individualizar emoções específicas (R. G. Collingwood) ou apresentar uma forma significante (Clive Bell e o formalismo do Bloomsbury Group).

O momento sísmico de Duchamp abriu brechas no entendimento formalista que era prevalecente na crítica artística; no entanto, foi o período entre guerras a reconfigurar o entendimento de arte: esta passou a determinar a imagética dos movimentos totalitários e a ser utilizada como meio de propaganda política. Gabriele D’Annunzio é disso um bom exemplo, inaugurando o movimento protofascista. Mas pensemos igualmente em Filipo Tomaso Marinetti e as ligações entre futurismo e fascismo italiano; Sergei Eisenstein e o cinema soviético; ou Leni Riefenstahl e Albert Speer, com os seus contributos para o regime nazi. George Orwell, no ensaio “As fronteiras entre a arte e a propaganda”, diz-nos que este período

“prestou um grande serviço à crítica literária, porque destruiu a ilusão do esteticismo puro. Relembrou-nos que a propaganda, de um modo ou de outro, se esconde em todo o livro, que toda a obra de arte tem um significado e um propósito – político, social e religioso – e que os nossos juízos estéticos são sempre afetados pelos nossos preconceitos e crenças. Pôs a nu a arte pela arte.”

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Contudo, ele conduziu-nos, simultaneamente, a um beco sem saída, pois gerou uma resposta filosófica perversa, representada pelas palavras de Walter Benjamin: “Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.”

Foi esta politização da arte a marcar as últimas décadas no ocidente, com uma subordinação do objeto estético a funções políticas, e que tem sido particularmente explorada pelos movimentos políticos que, desde os anos 60 do século XX, vêm defendendo o princípio de que o pessoal é político. As consequências ao nível artístico são evidentes: o valor do objeto passa a estar no propósito político que ele visa e não na competência artística.

Esta tendência é particularmente evidente no cinema e o recente filme português Listen revela-se um bom exemplo: premiado na 77.ª edição do Festival de Veneza, o seu reconhecimento é justificado pela abordagem às questões sociais e reforçado com o destaque dado pela própria realizadora às questões levantadas pelo filme. Esta valorização política do cinema transformou a noção de sétima arte e tem legitimado a produção de filmes de ativismo social, com um descurar das competências técnicas dos intervenientes – o que interessa é o modo como os filmes podem contribuir para a luta social. A crítica mordaz de Woody Allen àquilo em que o cinema se tornou é quase sempre certeira… Mas o impulso para pensar o cinema atual como instrumento de sensibilização política e meio de ação social parece quase inconsciente, como se os realizadores se sentissem compelidos a cumprir esse papel, perdendo com isso a própria irreverência artística.

Notemos agora a segunda consequência problemática que decorre da politização da arte: ao mesmo tempo que há uma desvalorização do objeto enquanto objeto artístico, o foco da atenção passa gradualmente para a identidade do sujeito que apresenta o objeto. O cinema encheu-se de quotas e a atribuição de prémios passou a ser avaliada a partir da identidade das pessoas premiadas. A lógica é sempre a mesma: todas as dimensões da vida pertencem à esfera política pelo que a luta pela justiça social deve sobrepor-se a tudo, até mesmo ao mérito artístico.

No caso recente da escolha do artista para representar Portugal na Bienal de Veneza, os problemas convocados por esta politização da arte tornam-se evidentes. O concurso parece ser mais uma trapalhada do governo, tendo gerado críticas generalizadas quanto a prazos, regras e mecanismos. Mas os artistas e os curadores concorreram tendo conhecimento das regras estabelecidas e aceitaram-nas no momento da candidatura. Naturalmente, os derrotados têm legitimidade para recorrer do resultado se entenderem que as regras não foram cumpridas – no entanto, a polémica que tem ocupado o espaço público é outra: dentro da lógica identitária e antissistema, o que se tem questionado é o facto de as regras previamente estabelecidas não terem conduzido ao resultado que foi pré-definido por aqueles que têm contestado a decisão final do concurso. A crise da arte chegou aqui: já não discutimos o objeto em si, mas as identidades dos artistas e a necessidade de as regras no mundo da arte responderem a exigências identitárias. E este concurso revela a lógica perversa da dinâmica identitária: na verdade, todos os concorrentes pertencem, de uma maneira ou de outra, a grupos identitários defendidos pelo movimento de justiça social – ainda assim, permanece a recusa pelas regras do jogo que não determinem a decisão considerada justa, dando origem a uma avaliação subjetiva que se pretende naturalizada. O resultado é uma política do ressentimento, que serve apenas para esconder a incapacidade de lidar com a frustração da derrota.

Como já assinalámos, o efeito redentor do argumento de justiça social é poderoso: afinal, quem é que está contra a justiça social? Mas a proposta identitária de justiça social é perigosa e profundamente iliberal. É iliberal, porque não admite pluralismo nem espaço de dissidência: mesmo aqueles que, de boa-fé, pareciam posicionar-se como seus aliados são rapidamente abalroados quando questionam os seus princípios. Assim, antigos aliados tornam-se rapidamente inimigos, acusados de todas as malícias que antes cabiam aos adversários mais puros. E é perigosa, porque consubstancia uma visão totalitária da vida. Essa visão totalitária decorre da própria supressão das fronteiras entre esfera pública e esfera privada quando afirmamos que o pessoal é político. Ao fazê-lo, eliminamos a possibilidade da diferença, da criatividade e da crítica livres e da arte como objeto de beleza e admiração, porque tudo o que fazemos deve subordinar-se à lógica política. Como diz Orwell, “não podemos realmente sacrificar a nossa integridade intelectual em nome de um credo político – ou pelo menos não podemos fazê-lo e permanecer escritores”.

E não deixa de ser assinalável que, oitenta anos depois de Orwell ter refletido no ensaio “Literatura e Totalitarismo” sobre a (im)possibilidade da literatura em contexto totalitário, tenhamos regressado ao mesmo tipo de reflexão. Isto revela como a deriva politizadora e identitária repete a mesma lógica da utilização da arte por parte dos regimes totalitários do século XX – pelo que devemos acautelar-nos da sua entrada pela porta principal e não saudá-la candidamente.

Na verdade, ainda que possamos reconhecer as limitações da ideia de arte pela arte, começa a sentir-se uma ânsia crescente por uma lufada de ar fresco que nos liberte desta visão claustrofóbica da vida e que liberte a arte da opressão politizadora. Uma lufada de ar fresco que nos traga um pouco do espírito de Oscar Wilde: “Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil, desde que não a admire. A única desculpa para fazermos uma coisa inútil é admirarmo-la intensamente. Toda a arte é perfeitamente inútil.”