Os meses de verão convidam a leituras leves, que possam ser intercaladas com um mergulho no mar e partilhadas numa conversa entre amigos e bebidas frescas, como o livro de Andrew Doyle de sátira ao movimento woke. Mas, na verdade, o assunto é sério e exige leituras complementares se queremos compreender as origens teóricas do movimento, o seu rápido crescimento na esfera pública, as fragilidades da sua argumentação, as ameaças que carregam. Uma hipótese de leitura para esse exercício complementar é Teorias Cínicas: como os ativistas académicos reduziram tudo a raça, género e identidade – e como isso nos prejudica a todos, de Helen Pluckrose e James Lindsay, igualmente publicado entre nós pela Guerra & Paz.

Com vista a tornar possível uma compreensão do movimento woke para a justiça social (MJS), os autores debruçam-se sobre as suas origens filosóficas, que podem ser encontradas no pós-modernismo da década de 60 do século XX e nas chamadas Teorias Críticas. Qual é o núcleo destas correntes filosóficas? Elas assentam numa atitude de suspeita generalizada face ao conceito de verdade, conhecimento objetivo, ciência, razão, progresso, pluralismo. Desconfiam, portanto, das instituições liberais e da ideia de uma humanidade universalmente partilhada, e percecionam a sociedade como dividida entre opressores e oprimidos, resultado de dinâmicas de poder que se expressam “em todas as interações, atos de fala e artefactos culturais”. A designação adotada de wokismo reflete precisamente a “crença de que é o único movimento «acordado», em inglês awakened, em relação à natureza da justiça social” e capaz, portanto, de detetar aquelas dinâmicas sociais opressivas.

Em quase 300 páginas, o livro de Pluckrose e Lindsay permite uma incursão teórica sólida ao pós-modernismo e às teorias críticas, abarcando praticamente todas as temáticas do MJS: pós-colonialismo, teoria queer, racismo, interseccionalidade, feminismo e estudos do género. Estes temas têm invadido a esfera pública e condicionado a dimensão política, pondo em causa as instituições liberais. Em sentido contrário e reivindicando a herança liberal, os autores deixam claro o seu posicionamento: o conceito de justiça social não foi inventado pelo pós-modernismo, mas constitui o próprio cerne do liberalismo (cf. John Rawls), que continua a ser a melhor ferramenta filosófica para construir uma sociedade mais justa – de que é prova o caminho percorrido nos últimos 200 anos.

Esta ameaça aos valores liberais, sob ataque à esquerda e à direita, é uma marca dos nossos dias. Mas há um outro aspeto que devemos considerar quando avaliamos o MJS: é o de que se trata de um movimento verdadeiramente antidemocrático, e tal perceção deveria servir de aviso para todos aqueles que, bem-intencionados, se sentem atraídos pela mensagem e desejo de construir uma sociedade mais justa.

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Partamos de um aspeto fundamental do pós-modernismo: as suas considerações sobre a linguagem. A desconfiança pós-moderna face à verdade objetiva e ao conhecimento científico resulta do seu entendimento da linguagem: para estes autores, a função da linguagem não é representar o mundo; ela é constitutiva do próprio mundo e da realidade (nas versões mais ligeiras, as palavras condicionam o modo como vemos o mundo; nas versões mais radicais, o mundo é uma construção linguística). E se a linguagem é constitutiva de sentido e compreensão, tal significa que não há um conhecimento final e único sobre a realidade; a realidade depende antes da linguagem que usamos. Tal significa também que quem controla a linguagem controla as dinâmicas de poder.

Este argumento filosófico já deu origem a milhares de páginas muito complexas no universo da filosofia, mas o que nos interessa aqui é chamar a atenção para a sua implicação política: se queremos impor a nossa visão do mundo e criar uma nova realidade política e social, então devemos dominar a linguagem e o vocabulário usados no espaço público. É exatamente isto que encontramos no MJS, com duas importantes estratégias.

Em primeiro lugar, notemos o uso hábil da linguagem quanto ao termo escolhido para nomear o movimento. Como dizem Pluckrose e Lindsay, “O movimento que lidera esta carga refere-se presunçosamente à sua ideologia simplesmente como «Justiça Social», como se apenas eles desejassem uma sociedade justa e todos os outros defendêssemos algo inteiramente diferente”. É uma estratégia linguística bastante comum e que opera com a lógica binária da linguagem (se estas ideias são de esquerda, as outras são de direta, etc.), mas assenta numa dinâmica antidemocrática porque elimina a possibilidade de discussão das propostas em causa: se estas são apresentadas como visando justiça social, ainda mais por elementos de grupos que se afirmam oprimidos, que legitimidade sobra para quem quer questionar essas medidas? Afinal, quem quer ser contra a justiça social e a libertação dos grupos oprimidos?

Chamemos a isto o efeito redentor: a suspensão da reflexão crítica e democrática em resultado de ser invocada a justiça social como fim. A essência da democracia assenta na ideia de que todas as propostas políticas são suscetíveis de discussão, mas quando elas são apresentadas desta forma desaparece a possibilidade de um debate racional e pluralista. O efeito redentor suspende a dinâmica democrática.

Por outro lado, e como notam Pluckrose e Lindsay, “No mundo anglófono, estas pessoas falam inglês, mas usam o nosso vocabulário normal de uma forma diferente de nós. Quando falam de «racismo», por exemplo, não se referem a preconceito racial, mas sim, usando a sua própria definição, a um sistema racializado que permeia todas as interações sociais enquanto se mantém em grande parte invisível para todos exceto para as suas vítimas e para aqueles que foram adequadamente treinados nos métodos «críticos» adequados para o detetar.”

Mais uma vez, esta estratégia é profundamente manipuladora. As pessoas são levadas a concordar com uma certa ideia porque partem do princípio de que estão familiarizadas com o uso daquele vocabulário. O que na realidade acontece é que os ativistas do MJS não estão a usar as palavras com o mesmo sentido do dia-a-dia e provocam o efeito redentor. As pessoas tendem a aderir à proposta que é apresentada como promovendo a justiça social, mas essa adesão resulta de um embuste que subverte a lógica democrática de emancipação.

Vejamos o efeito prático destas estratégias. Se considerarmos que o movimento woke nos países anglo-saxónicos compreende uma minoria de ativistas, sobretudo jovens, não deixa de surpreender o seu crescimento e a sua capacidade de condicionar as decisões políticas. Isto significa que, usando destas estratégias, o wokismo tem conseguido impor uma agenda muito para lá da vontade da maioria – o mesmo é dizer, desafiando a lógica democrática. Reclamando um acesso privilegiado à verdade – afinal, eles estão acordados e os outros não –, têm condicionado as decisões políticas sem considerarem os princípios e valores dos seus concidadãos, que são condenados como retrógrados e conservadores e que devem submeter-se à vontade da minoria iluminada. E essa vontade é a de criar uma realidade radicalmente diferente da nossa.

Justiça lhes seja feita: reconhecem, por regra e com honestidade, que a sua agenda é mais importante do que os valores democráticos. E tendo em consideração o aspeto geracional e o papel desempenhado pelas Universidades na disseminação destes valores, não surpreende que os estudos mais recentes demonstrem que os jovens estão cada vez mais recetivos a regimes iliberais e autoritários. Nascidos dentro de uma cultura democrática que foi a sua condição de possibilidade, estes movimentos constituem a maior ameaça a essa mesma cultura democrática.