1 A Nova Esquerda

Ainda antes da queda do muro de Berlim, do fim do regime soviético e das transformações sociais e económicas que tornaram o conceito de proletariado quase obsoleto, já era possível encontrar uma reação, à esquerda, contra os sonhos desfeitos do marxismo-leninismo. Podemos designar essa reação como gramsciana, por se inspirar no intelectual comunista italiano Antonio Gramsci, dando origem a um movimento que abandonava a matriz materialista do marxismo para visar a revolução cultural.

No mundo anglo-americano, que se tornava já culturalmente hegemónico, este movimento ficou conhecido como New Left, amadurecido primeiro em Inglaterra com E. P. Thompson, Perry Anderson e Stuart Hall, e popularizado nos Estados Estados com C. Wright Mills e a sua “Letter to the New Left”, publicada em 1960 na New Left Review. Só mais tarde, o alemão Herbert Marcuse, radicado nos Estados Unidos, será designado como “o pai da Nova Esquerda”, com os seus ideais de libertação política, emancipação sexual e luta por justiça social, que ficariam associados aos movimentos de contracultura das décadas de 1960 e 1970.

A New Left é um movimento fundamentalmente intelectual e ganhou forma no contexto universitário, pelo que está ligado às lutas que dominavam o espaço académico norte-americano nos anos 60: os movimentos pelos direitos civis e contra a guerra no Vietname. Está também ligada à maior organização norte-americana de estudantes ativistas – a Students for a Democratic Society (SDS) –, cujos membros se sentiram imediatamente seduzidos pela “Carta à Nova Esquerda” de Mills e o seu argumento de que caberia aos jovens intelectuais a função de promover as mudanças radicais de que a sociedade norte-americana carecia.

Tom Hayden, presidente da SDS e que se viria a tornar uma figura incontornável no panorama político norte-americano, agarrou a função de vanguarda revolucionária e redigiu o The Port Huron Statement, manifesto aprovado em 1962 e um dos documentos fundamentais da Nova Esquerda. É neste manifesto que encontramos, entre o protesto contra as desigualdades raciais e a guerra no Vietname, a reivindicação de que só é possível criar uma sociedade mais livre e justa através de uma democracia participativa e, portanto, da democratização de todas as dimensões da vida.

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Para esse processo, Hayden reconhece que a Universidade ocupa um lugar privilegiado, pelo que estudantes e professores devem compor uma aliança que constitua “uma base para o assalto aos centros de poder”.  Assim, “enquanto estudantes para uma sociedade democrática, estamos empenhados em estimular este tipo de movimento social, este tipo de visão e de programa no campus e na comunidade por todo o país”.

No final da década de 1960, as diferentes fações que dividiam a SDS (nomeadamente, o grupo Weather Underground, que recorria a táticas terroristas) conduziram ao seu fim – mas a ideia de que a Universidade devia ser ocupada por forma a desempenhar um papel político já estava estabelecida.

2 A politização da Universidade

No espírito de contracultura daqueles anos, a Universidade era vista como manifestando as estruturas de injustiça e desigualdade da sociedade norte-americana e entendida como uma instituição ao serviço do sistema. A contestação às universidades (que se espalharia um pouco por todo o ocidente) exigia que ela assumisse um papel diferente: ao invés de se manter isolada das lutas sociais, a Universidade deveria promover ativamente o objetivo de uma sociedade mais justa e democrática, bem como formar as novas gerações que tornariam esse objetivo possível.

O primeiro passo passaria pela promoção de mudanças que tornassem as universidades mais diversas e inclusivas, e foi o que aconteceu, sobretudo, no mundo anglo-americano. Importa notar que muitas destas exigências faziam sentido: sociedades mais democráticas traduzem-se em universidades mais abertas, com a entrada de estudantes de grupos sociais que estavam tradicionalmente excluídos. Nos Estados Unidos, essa abertura traduziu-se num corpo discente mais diverso (racial, social e etnicamente), o que exigia mudanças que facilitassem a integração, nomeadamente com códigos de conduta e linguísticos. Igualmente relevante foi o número crescente de estudantes do sexo feminino (e a força dos movimentos feministas), que obrigou a alterações curriculares.

Contudo, a par de algumas mudanças (que admitimos necessárias), aprofundava-se o objetivo maior de politização da Universidade, e em muitas áreas, sobretudo das chamadas ciências sociais, isso traduzia-se no plano de formar estudantes, a partir de um determinado quadro de valores, para se tornarem agentes ativos de mudança social. É neste contexto que, ao longo das últimas décadas, se desenvolvem as teorias críticas, sobretudo relevantes no domínio da raça e do género, e também se multiplicam as políticas e regras de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão).

Seriam as ferramentas oferecidas por aquelas disciplinas e as regras estabelecidas por estes departamentos que os estudantes universitários deveriam levar consigo ao saírem da universidade para o mundo do trabalho, denunciando as estruturas de poder e opressão e iluminando as mentes ignorantes daqueles que continuam agarrados às velhas formas de vida.

Mas como sempre acontece quando aplicamos critérios políticos a instituições não-políticas, perdemos a finalidade que guiava essas instituições. É o que tem vindo a acontecer com as universidades, com um peso diferente em diferentes países e diferentes áreas: a finalidade tradicionalmente pensada para as universidades – a procura pela verdade – tem vindo a ser substituída pela nova finalidade politicamente estabelecida: a procura pela justiça social.

E é por essa razão que a principal vítima da politização das universidades tem sido a liberdade de expressão: a procura pela verdade pressupõe a liberdade de expressar diferentes opiniões, estudos, argumentos – e é do confronto e da discussão entre eles que procuramos chegar à verdade, sempre complexa, sempre plural, sempre precária. Mas quando o objetivo é a justiça social, a investigação académica torna-se limitada e as opiniões politicamente inaceitáveis devem ser silenciadas.

3 A polarização política

A propósito da recente polémica com a presidente demissionária da Universidade de Harvard, o renomado Steven Pinker publicou, em texto de opinião, um plano em cinco pontos para salvar Harvard de si própria. O primeiro desses tópicos é a defesa da liberdade de expressão, que está em profunda crise naquela universidade; outro é o desmantelamento das estruturas de DEI, que estão intimamente relacionadas com a ameaça ao free speech.

Mas importa destacar o quarto tópico apontado por Pinker: as universidades de elite norte-americanas tornaram-se “monoculturas intelectuais e políticas”, com a larga maioria dos professores a considerar-se liberal (de esquerda). Esta circunstância faz com que os estudantes universitários não sejam sujeitos a diferentes opiniões e posições políticas pelo que acabam por adotar uma visão unidimensional do mundo, tornando-se menos capazes de lidar com a diferença e o dissenso. A Universidade parece assim isolá-los numa bolha ideológica que os afasta do mundo lá fora, o mundo real onde vive o resto da população, a maioria da população (compreender-se-á assim facilmente por que razão os estudos revelam uma crescente desconfiança da população norte-americana nas suas universidades).

É por esta razão que muitos autores chamam a atenção para a divisão social que se vai criando entre os jovens que saem das universidades e o resto da população: Mark Lilla, em De esquerda, agora e sempre, debruça-se sobre este aspeto, expressando a sua preocupação com a incapacidade do partido democrata falar com e conquistar aquele que era o seu anterior eleitorado; David Goodhart, em The Road to Somewhere, contrapõe os cosmopolitas anywheres com os enraizados somewheres para se referir às divisões sociais que, em Inglaterra e nos Estados Unidos, teriam conduzido aos acontecimentos de 2016; e, mais recentemente, Matthew Goodwin, em Values, Voice and Virtue, aproxima-se deste argumento para refletir sobre aquilo que tem sido designado no Reino Unido como populismo nacionalista.

O resultado tem sido um processo de crescente polarização política, com a impossibilidade de diálogo entre os dois lados desta divisão, pelo que o papel desempenhado pela Universidade nesse processo não deve ser esquecido.