1 O papel das universidades na polarização política

Como tenho vindo a argumentar, o pequeno texto de Benjamin Constant, Da liberdade dos antigos comparada com a dos modernos, é particularmente útil para compreender a modernidade liberal e a conquista daquilo que consideramos como a esfera das liberdades individuais. É porque os modernos reivindicam um espaço privado, onde o poder político não deve interferir, que garantimos um conjunto de liberdades privadas, como a liberdade de consciência, de religião, de pensamento, de expressão.

É esse espaço de liberdades individuais que desaparece quando movimentos políticos afirmam que o pessoal é político, suprimindo a esfera privada e querendo aplicar a lógica e os princípios políticos ao domínio privado – ou seja, querendo submeter todas as dimensões da vida a objetivos políticos. A consequência só pode ser uma: se atribuímos novos objetivos a antigas instituições, os anteriores objetivos desaparecem: se, por exemplo, o objetivo da arte passa a ser a representatividade política ou a criação de uma narrativa política de resistência, a procura por excelência e beleza desaparece. E a verdade é que vemos agora, por todo o lado, os corpos desmembrados desses antigos objetivos.

Em texto recente, debrucei-me sobre como este processo de politização, mais do que se fazer sentir nas universidades, nasceu nas universidades, no contexto de protesto e contracultura dos longos anos 60, de luta pelos direitos civis e contra a guerra no Vietname. Foi pelas mãos de uma vanguarda cultural de esquerda – a New Left – que a Universidade foi tomada para passar a cumprir um objetivo político: o de tornar a sociedade norte-americana, e ocidental, mais justa. Isso passaria por reformular currículos, redigir códigos de conduta e linguagem e usar o ambiente académico para formar estudantes-ativistas. Mas a estipulação desse novo objetivo académico – a procura por justiça social – implicou o abandono do velho objetivo académico – a procura pela verdade (com todas as nuances interpretativas que a noção comporta).

Terminei o meu texto recordando como alguns autores chamam a atenção para o facto de as universidades anglo-americanas, com o seu objetivo político explícito de formar gerações de ativistas, têm constituído um vetor fundamental de divisão social entre aqueles que vão para a universidade e o resto da população. É por esta razão que, como argumentei no livro Polarização, devemos reconhecer o papel desempenhado pelas universidades no atual momento de polarização política. Isto porque, apesar de a política assentar na pluralidade de valores e entendimentos sobre o bem comum, o contexto de polarização vai para lá disso: traduz uma total incapacidade de diálogo entre as duas partes, como se estivessem perante um fosso intransponível. E as universidades ajudaram a criar esse fosso.

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2 A polarização política nas universidades

A politização das universidades tem efeitos imediatos naquele que é o método académico tradicional, que consiste em sujeitar o trabalho intelectual e as hipóteses de investigação a uma troca livre e racional de argumentos. É aquele momento que qualquer académico preza: quando, no final de uma conferência, os nossos pares sujeitam os nossos argumentos a uma avaliação crítica. Não vale a pena romantizar: não se trata de um momento fácil, pois ninguém gosta de ser bombardeado com questões que põem em causa o seu trabalho (sobretudo, se levado a cabo de forma séria e honesta). Mas, no final, ficamos a ganhar: se o argumento for forte, saímos mais fortes; se for fraco, teremos mais hipóteses de o melhorar.

Contudo, a politização das universidades eliminou este processo clássico. Ao determinar que o objetivo das universidades é a justiça social (e não a verdade), o novo entendimento académico está a condicionar que ideias podem ser discutidas, que hipóteses podem ser investigadas, que lugar ocupam aqueles que querem defender ideias menos consensuais. E já sabemos como esta atitude se traduziu em lógicas de cancelamento, para impedir que essas ideias, essas hipóteses e essas pessoas sejam ouvidas.

O processo foi agravado com o facto de essa politização ter um cariz essencialmente identitário, que une de forma indissolúvel as ideias apresentadas à identidade da pessoa que as apresenta, pelo que todas as críticas às ideias são consideradas como um ataque à identidade. A discussão fica irremediavelmente posta em causa e as universidades tornam-se profundamente polarizadas.

3 A polarização nas universidades portuguesas

Em Portugal, o ambiente académico não se encontra tão degradado como no mundo anglo-americano, mas o diagnóstico não é linear, pois varia muito de área para área e até de universidade para universidade. De qualquer modo, é evidente que, nas áreas das ciências sociais, humanas e políticas, a balança se encontra claramente favorável à esquerda; e se as questões identitárias não têm, felizmente, o mesmo impacto que se regista nos Estados Unidos, o argumentário feminista tem um peso cada vez mais relevante.

Mas é possível identificar uma gradual polarização no ambiente académico, que se traduz numa crescente incapacidade de ouvir vozes politicamente diferentes das nossas e considerá-las legítimas – como se só aqueles que pensam como nós merecessem ser ouvidos. Por essa razão, as conferências e os seminários parecem cada vez mais câmaras de eco, em que a perspetiva ideológica é sempre a mesma, e a bolha vai-se autoalimentando porque simplesmente recusamos ouvir alguém que tenha ideias “politicamente incorretas”.

Acima de tudo, parece prevalecer uma generalizada incuriosidade. E na área política isso é particularmente evidente quando os académicos, ao invés de quererem compreender os fenómenos, estão mais preocupados com o seu julgamento moral. É o que tem acontecido, na última década, com os investigadores (e os jornalistas, já agora) que quedaram, estupefactos, perante o crescimento dos movimentos que designam como populismos de direita: Como é possível que as pessoas votem nessas ideias, acreditem naquelas informações, confiem nessas pessoas?, perguntam eles. Mas com a expressão “como é possível?” não estão realmente a perguntar “como é que isso se tornou possível?”; estão simplesmente a emitir um juízo moral sobre o tipo de pessoa que vota, acredita e confia naquelas ideias, informações e pessoas.

De facto, encontramos poucos vestígios daquela curiosidade sincera que nos impele a compreender por que razão milhões de pessoas escolhem projetos antissistema ou se opõem às ideias que a elite decidiu que eram as melhores. A maioria dos investigadores parece mais preocupada em saber como silenciar essas vozes (recusando que ideias com as quais discordam possam circular no espaço público, multiplicando as acusações de ismos e fobias, exigindo proibições e declarações de ilegalidade) do que em compreender por que razão tantas pessoas sentem que o sistema não está a funcionar para elas.

4 E a geração fada-dos-dentes?

Se, por um lado, a academia se tem tornado um espaço de crescente incuriosidade e incapacidade de discussão, por outro, as gerações que têm chegado às universidades, com as particularidades que já explorei e a que voltarei em breve, aprofundam a sensação de polarização.

Estudos recentes têm revelado consistentemente que, no ocidente, as novas gerações acreditam menos nas instituições democráticas, são mais suscetíveis à ideia de líderes fortes e têm menos capacidade de participar, de modo saudável, em discussões políticas. Em particular, e revertendo o espírito de rebeldia que geralmente marca a juventude, os mais novos parecem cada vez menos capazes de ouvir coisas com as quais não concordam.

Talvez não seja, por isso, surpreendente a reação da Associação Académica da Universidade do Minho a uma entrevista ao Presidente da Escola de Economia e Gestão daquela Universidade. Perante o êxodo dos jovens licenciados, Luís Aguiar-Conraria defendeu que as propinas devem ser aumentadas, uma vez que o país não pode estar a financiar futuros trabalhadores dos países ricos (argumento explicado aqui). Esta posição terá certamente os seus méritos e os seus deméritos (como todos os argumentos), mas a reação da AAUM é sintomática dos novos tempos:

“A Associação Académica da Universidade do Minho não compreende como é que um Presidente de uma prestigiada Escola da Universidade do Minho e do país (e [sic] todas as responsabilidades que são inerentes ao exercício do seu cargo) consegue defender publicamente este posicionamento e vem, desta forma, publicamente condenar a afirmação.” (itálicos meus)

No dia seguinte, a associação organizou mesmo um protesto junto à EEG, que pode ser apreciado nas imagens partilhadas no Facebook. Mas quão preocupante é que jovens estudantes considerem que a reação adequada a uma opinião é organizar um protesto na universidade?

O Presidente da Escola, com bastante paciência democrática, reuniu com elementos da associação para que, no final, eles chegassem à conclusão de que… têm posições diferentes. Que pelo menos a geração mais qualificada de sempre tenha aprendido que é isso que acontece em sociedades livres: as pessoas têm opiniões diferentes, devem poder expressá-las livremente e sujeitarem-se a críticas e argumentos. Bem diferente é organizar protestos porque alguém disse alguma coisa com a qual não concordamos. Isso é que está muito longe do que deve acontecer em sociedades livres e democráticas.

PS: Ao frequentar o curso de Filosofia da Universidade do Minho, há quase duas décadas, tive a sorte de ter excelentes Professores, que estimularam sempre a curiosidade intelectual e o diálogo filosófico. Com quase todos aprendi que é mais importante conhecer as ideias com as quais discordamos do que as ideias com as quais concordamos e, por isso, recordo muitas vezes como o Prof. João Cardoso Rosas (meu orientador) dedica o seu livro Concepções da Justiça a todos os seus ex-alunos, mas “especialmente, àqueles que discordaram de [mim] em alguma ocasião”. Não há lição mais importante.