Noutros tempos, os prédios tinham porteiros, com a sua mesa à entrada, entre plantas envasadas. Depois, foram os bares e discotecas que deram a alguns seres mais ou menos humanos o poder de decidir, logo a seguir aos deuses, quem era e não era material de pista de dança. Agora, é também o Tribunal Constitucional.

Não sou eu quem o diz. É o que transborda do júbilo com que a jornalista Fernanda Câncio e os seus fãs de rede social receberam a notícia da recusa dos juízes conselheiros em fazerem do Dr. Almeida e Costa um deles. Tinham sido eles, com os seus tweets. Aqui, devia seguir-se talvez uma reflexão amargurada sobre o tempo das redes sociais, as suas matilhas de virtude e a “cultura de cancelamento”, em que vale recortar uma frase do seu contexto de 1984, e usá-la para caçar uma pessoa em 2022. Não vou, porém, dar para esse santo peditório. É que, apesar das aparências, nem a jornalista nem a sua malha de admiradores votaram na reunião do Tribunal Constitucional. Foram os juízes que votaram, e diluir os seus votos numa campanha de tweets e artigos de jornal é fazer-lhes o favor, nada merecido, de diluir as suas responsabilidades.

Não, este não foi um caso de escrutínio público. Foi uma campanha montada para que as manobras internas de rejeição de um candidato pudessem ser cobertas pela diversão de um escândalo mediático, preparado para fazer a votação parecer um triunfo do activismo populista. O risco de aqui perdermos de vista o fundamental é mesmo muito grande. E o fundamental é uma captura das instituições por uma oligarquia socialista que já percebeu que, nos tempos que correm, um bom método de eliminar candidatos que não alinhem pelas suas cartilhas é ir ver o que escreveram há quarenta anos, dar-lhe um toque “fascista”, e expor tudo depois, através da imprensa e das redes, aos chiliques de indignação pronto-a-vestir do novo puritanismo progressista. Nesta história, a jornalista e os seus fãs são meros figurantes. O seu aparente poder é apenas o poder da oligarquia instalada no Estado, que os usa como simples banda sonora da sua monopolização de posições. Se não interessassem ao poder instalado, esta imprensa e estas redes sociais não teriam qualquer importância, tal como não têm todas as vagas de protesto que outros, do outro lado, tentaram levantar nas redes sociais contra a ministra da Saúde, e que sempre se esmagaram sem ruído contra o maciço muro de indiferença do poder socialista. Um dia, todos os juízes do Tribunal Constitucional serão socialistas, e esses juízes não precisarão de se preocupar com o que escreveram em 1984.

Portanto, não atirem sobre a porteira. Ela é meramente instrumental. Atirem sobre o patrão do bar que dá instruções à porteira para não vos deixar entrar. Atirem sobre o dono da discoteca que não quer na pista ninguém que não dance exactamente como ele. Posto isto, havia outras coisas que poderíamos discutir. Por exemplo, o sistema de cooptação parcial dos juízes, que numa instituição capturada por interesses partidários e outros apenas serve para lhe acentuar os piores traços. No meio disto, com uma admirável distracção, o Presidente da República pede “consenso”. Consenso? Desculpará, Sr. Presidente, mas consenso é o que nós temos a mais: é o consenso fomentado por um Estado socialista omnipotente, executado por uma imprensa domesticada, e exaltado por uma rede de idiotas de serviço, engasgados com o que nos últimos anos tem passado por moral no departamento de Estudos Culturais de uma qualquer universidade americana. Consenso? Muito provavelmente é do que nós menos precisamos neste momento.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR