Quando já todos dávamos por perdida a resposta ao problema da Avenida Almirante Reis, a Câmara de Lisboa usa as paragens de autocarro para nos extrair suavemente qualquer restinho de esperança, anunciando nelas um “processo participativo”. Os cartazes exibem uma avenida suja, desordenada, mal frequentada por matulagem escondida debaixo dos capuzes. A preto sobre um rectângulo branco, a frase medonha: “Transformar a Avenida com as Pessoas e para as Pessoas” (sic, maiúsculas inclusive). E em letras gordas, “Participe!” – como se os lisboetas fossem crianças.
Carlos Moedas devia apresentar-se aos serviços de comunicação e publicidade institucional da Câmara, que trabalharam às ordem do PS e da extrema-esquerda durante 14 anos de seguida; é natural que tenham desenvolvido estes vícios de baixa retórica e demagogia. Têm de perceber que o governo da cidade mudou. A própria população, e os eleitores, também precisam de perceber que mudou, tanto mais que esta foi uma mudança importante, uma descontinuidade desejada, nascida de um gesto eleitoral de repúdio de uma candidatura da esquerda contra uma união da direita representada por Carlos Moedas. O cartaz está todo errado.
“Com as pessoas e para as pessoas”. Com certeza não é com batráquios, valha-nos Deus. Serão sempre pessoas, como é evidente; a frase parece pateta. É pior que pateta. A frase quer dizer que não é com os políticos ou para os políticos, e a ideia que suporta este esclarecimento é profundamente inculta e anti-democrática. Desde logo porque os políticos são pessoas (peço licença para relembrar), e vêm da mesma sociedade que governam; neste plano, são pessoas com responsabilidades e obrigações especiais. Os políticos são mandatados pelas pessoas para tomar decisões por elas, e para executarem por elas coisas que as pessoas não podem fazer porque não têm poder para isso. Em todas as sociedades existem interesses em conflito; a democracia tem os mecanismos que permitem viver esses conflitos ordenadamente, e pacificamente, e alternadamente.
Como se determina quem tem poder para certas coisas, como alterar avenidas? Através de eleições. No caso dos municípios, as eleições escolhem separadamente um conjunto de vereadores e um conjunto de deputados às assembleias municipais. Uns e outros serão representantes dos eleitores durante o período do mandato. Ganham esse poder, que se pode olhar, de certa maneira, como um privilégio; mas ganham, acima de tudo, a autoridade política e democrática que os representantes dos cidadãos têm a obrigação de exercer. Quando a Câmara resolve chamar “as pessoas” para decidir actos de governação está a subtrair-se às suas responsabilidades e a falhar o compromisso com os cidadãos. Os cidadãos já decidiram, esperam que os eleitos cumpram.
E por que motivo é errado insistir em ouvir “as pessoas”? E esperar delas uma decisão? A pergunta seguinte é: quais pessoas? As que aparecem nas sessões públicas? Quem são as pessoas que aparecem nas sessões públicas? Para começar, são pessoas com tempo livre; ou que não trabalham; ou agitadores; ou até profissionais da “participação”, controlados ou descontrolados pelos partidos da esquerda e da extrema-esquerda. Os grupos de pressão, vocais e manhosos, compostos por gente que ninguém elegeu, não podem ter uma opinião vinculativa. Estes grupos exercem junto do poder político um estatuto sobrestimado e uma influência inaceitável. Só o voto em eleições pode dar garantias de proporcionalidade. É por isso o único “processo participativo” legítimo. Não há outro. Os eleitores já disseram o que querem e também, muito claramente, o que não querem na Avenida Almirante Reis.