Em 1967 o escritor colombiano Gabriel García Márquez, amigo de Castro e admirador de Guevara, Prémio Nobel da Literatura, deixou, para quem aprecia a sua escrita, uma das obras então mais badaladas da literatura mundial a que deu o título de Cem anos de solidão. Dela destaco aqui uma pequena passagem, que descreve os sintomas de uma das doenças mais graves e sem solução satisfatória à vista.

Os habitantes da aldeia imaginária de Macondo sofriam de uma terrível maldição. Com o passar dos anos, simplesmente perdiam «o nome e a noção das coisas». «Quando o seu pai lhe confidenciou o pavor que sentia por se ter esquecido até dos acontecimentos mais marcantes da sua infância, Aureliano explicou-lhe o seu método, e José Arcadio Buendía pô-lo em prática em toda a casa e, mais tarde, impô-lo a toda a povoação. Com um pincel embebido de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, mandioca, orelha-de-elefante, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade.» [Tradução minha]

«Gabo», como também carinhosamente lhe chamavam nas Américas latina e central, fala-nos da doença de Alzheimer, uma forma comum de demência, enfermidade neurológica progressiva caracterizada pela perda da memória, que afeta o pensamento, a perceção, o cálculo, a capacidade de aprendizagem, a linguagem e o sentido da orientação, e que acontece, frequentemente, com o envelhecimento físico. Altera, de forma dramática, a vida quotidiana de quem dela sofre e a daqueles que estão à sua volta, muitos dos quais, aos poucos, se vão transformando em cuidadores de saúde 24 horas sobre 24 horas e durante 365/6 dias por ano.

Atualmente, um em cada dez indivíduos com 65 ou mais anos padece da doença de Alzheimer. Existem mais de 46 milhões de pessoas afetadas em todo o mundo e a cada três segundos diagnostica-se mais um novo caso.

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Assinalou-se no dia 21 de setembro o Dia Mundial da Doença de Alzheimer. Em Portugal, não temos números seguros de quantos doentes existem. Sabe-se que em 2017 um relatório da OCDE situava-nos no 4.º lugar com mais casos por cada mil habitantes. A média da OCDE é de 14,8 casos por cada mil habitantes, sendo que, para o nosso país, a estimativa é de 19,9 casos.

Com a doença de Alzheimer, as pessoas que a contraem começam por apresentar limitações preocupantes, com progressivo declínio das suas capacidades funcionais e cognitivas, nomeadamente apresentando lapsos de memória, dificuldades de julgamento, tomada de más decisões aquisitivas e enormes dificuldades no governo dos seus bens. Muito, mas muito importante é, em termos jurídicos, adaptar as normas que o direito sénior desenvolveu para as proteger.

Nessa fase da vida, em que se deixa de cuidar para passar a ser cuidado, levantam-se importantes questões de ordem jurídica que merecem ser esclarecidas, designadamente: a) quem são as pessoas responsáveis por auxiliar os seniores, nomeadamente, nos seus direitos aos alimentos e à habitação, e que direitos lhes assistem; b) de que forma os seniores podem garantir que os seus herdeiros recebam os seus bens, em vida e após o seu falecimento, e de que forma; e c) quais os herdeiros que podem ser deserdados, e como.

Os familiares têm o dever de cuidar dos seus seniores, em especial os filhos adultos têm a obrigação, quanto mais não seja moral, de cuidar dos pais, sendo que esse dever nem sempre se traduz, necessariamente, em apoio financeiro. Na maioria dos casos que conhecemos, os seniores precisam de cuidados médicos, de medicação, de ajuda para cuidar da sua habitação, da sua higiene e mesmo da sua alimentação. Infelizmente existem casos em que os filhos e, por vezes, os netos, que embora obrigados legalmente a prestar tais amparos aos pais ou aos avós, não o fazem de livre e espontânea vontade, abandonando-os nas suas casas ou em lares, quando não «esquecendo-se» mesmo deles em hospitais…

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1874.º do Código Civil «pais e filhos devem-se mutuamente […] assistência». No n.º 2 do mesmo artigo é ainda referido que «[o] dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os próprios recursos, para os encargos da vida familiar.»

Planear a sucessão é muito importante, porquanto permite garantir que, dentro do quadro legal, se deixa validamente expressa a vontade quanto à distribuição do património, identificando quem se quer beneficiar, e como. O testamento permite que as últimas vontades sejam cumpridas.

A regra, no ordenamento jurídico português, é a da não admissibilidade da deserdação.

No entanto, esta regra admite exceções, o que se compreende, uma vez que podem ocorrer casos que justifiquem que o autor da herança não queira que determinada quantidade do seu património, após a sua morte, seja atribuída a determinados herdeiros.

O autor da herança pode deserdar o herdeiro legitimário nas seguintes circunstâncias: 1) ter o herdeiro sido condenado por um crime doloso contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, do seu cônjuge, descendentes, ascendentes, adotantes ou adotados, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses; 2) ter o herdeiro sido condenado pelo crime de denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas; e 3) ter o herdeiro, sem justa causa, recusado ao autor da herança ou ao seu cônjuge os devidos alimentos.

Na doença e no acompanhamento dos atos médicos temos o dever de seguir as normas do direito sénior. O padecente da doença de Alzheimer, ao submeter-se a assistência médica, não perde a sua dignidade de pessoa humana nem os direitos que lhe são inerentes, entre os quais, o direito de autodeterminação em relação à sua saúde.

Assim, o padecente tem o direito de conhecer o diagnóstico da sua doença, as consequências da mesma, as possibilidades de tratamento e os seus efeitos, a fim de poder decidir o que quiser e da forma que considerar mais conveniente.

O futuro apresenta-se preocupante. Estima-se que em 2030 serão 74,7 milhões de pessoas a sofrer da doença descoberta nos inícios do século passado pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Aloysius Alzheimer (1864-1915), Falando em custos monetários associados, hoje, cada família que tenha no seu seio um ente a braços com tão nefasto mal, despende mais de 25 mil euros anuais para cuidar dele.

A vida e o conhecimento é a nossa memória. Somos a imagem e a recordação de milhares de apontamentos do nosso passado. Quando perdemos a memória perdemos parte da nossa existência e, sobretudo, a nossa identidade. Por isso, e nunca é demais lembrá-lo, não esqueça que deve preparar-se para o envelhecimento. Não se descuide, pois o tempo é inimigo da inércia. O tempo, de todas as batalhas que travemos e de todas as vitórias que alcancemos, sai sempre como o grande vencedor.