Fez dez anos, a 26 de Julho do presente ano, o discurso de Viktor Orbán no Festival Livre Universitário e Estudantil de Bálványos, na Roménia. Este discurso pode ser referido como o “discurso da democracia iliberal”, e nele o primeiro-ministro húngaro introduziu o conceito no discurso político oficial do país da Europa de Leste. Segundo Orbán, o século XXI é determinado por pelo menos dois acontecimentos principais. Em primeiro lugar, a competição entre os países e as alianças do mundo, que envolve a dedicação a reflexões sobre como um determinado país, numa época de globalização, pode ser competitivo ou estar em risco de deixar de o ser. Mas esse acontecimento não se sobrepõe em importância relativamente ao seguinte: o desenvolvimento “de um Estado que seja capaz de tornar uma nação bem-sucedida.”.
A crise financeira de 2008, a que Orbán chamou “crise financeira ocidental”, foi, segundo o estadista, um ponto de viragem. Esta crise, seguindo o pensamento do mesmo, põe fim à prevalência de um discurso baseado numa “mundivisão liberal” e abre portas a modos de refletir algo disruptivos. Apresentou um exemplo: Barack Obama, então presidente dos EUA, afirmou que a América estava cheia de cinismo e que havia o dever de combater o cinismo proveniente do sistema financeiro e que se os norte-americanos mais trabalhadores “têm regularmente de escolher entre família e carreira”, então a “América” poderia vir a perder “o seu lugar entre a economia global”.
A família e a “democracia iliberal”
Segundo Balázs Orbán (sem relação sanguínea com o primeiro-minstro húngaro), a democracia liberal “reduz a governança a um assunto técnico e interpreta os valores de governo como o primeiro passo para uma ditadura de comunidade”. Neste sistema (democrático-liberal), “a escolha de valores no geral, e as escolhas de valores no governo em particular, são actos arbitrários”. E é aqui que o modelo húngaro, segundo o director político do atual primeiro-ministro da Hungria, deve fazer a diferença, tratando “as comunidades como valores” e as “comunidades prósperas” enquanto condição sine qua non da “liberdade individual”. Trata-se aqui de um desvio assumido relativamente à democracia liberal e foi isso que motivou o governo húngaro a fortalecer as comunidades, especialmente aquelas que mantêm “o funcionamento orgânico da sociedade”. Entre os vários exemplos de comunidades existentes, tais como a organizações religiosas, desportivas e cívicas e as vilas e cidades, há uma de pequena escala que é aquela onde todos os seres humanos nascem: a família.
Mas não é só por ser uma comunidade que a família é importante para um governo conforme ao “modelo húngaro”.
Até aqui, vemos que Viktor Orbán revelou em 2014 (senão antes, com a adoção da atual constituição húngara em 2011) a sua convicção de que família e carreira podem ser duas dimensões conflituais. Daí que o primeiro-ministro húngaro, no discurso a que nos referimos acima, tenha tentado fundamentar que é necessário vigiar o sistema económico-financeiro das sociedades e da ordem mundial de modo que este não perturbe as famílias. Quanto a Balázs Orbán, este entende que um dos papéis do governo, governo esse que não se enquadra num sistema de “democracia liberal”, deve atribuir especial atenção às comunidades, direcionado a sua atividade para o empoderamento das mesmas.
Terá o primeiro-ministro húngaro, reeleito três vezes, rejeitado, desde o princípio, o liberalismo? Ou será que a proposta de rejeição da “democracia liberal”, enquanto modelo de governação para a Hungria, é uma provocação? Ou será simplesmente uma demonstração de reprovação de uma determinada definição de liberalismo ou de “democracia liberal”? Tenho lido a obra Una Defensa del Liberalismo Conservador (“Uma Defesa do Liberalismo Conservador”, se quisermos traduzir para português) do Professor Francisco José Contreras, ex-deputado do partido espanhol Vox (até à última legislatura) e professor de Filosofia do Direito na Universidade de Sevilla. Informando-nos sobre John Locke, Thomas Hobbes, Montesquieu, Adam Smith e Friedrich Hayek, Contreras acaba por ter sucesso, na minha opinião, em demonstrar como as ideias dos pensadores liberais clássicos podem ser, actualmente, consideradas conservadoras, ou mesmo ultraconservadoras, só para os nossos amigos progressistas e libertários se sentirem um pouco mais incluídos. O livro é uma resposta de alto nível àqueles que, ao mesmo tempo, se assumem como seguidores destes intelectuais liberais e se autoclassificam como libertários ou liberais distantes do conservadorismo. É muito provável que Orbán, os restantes oficiais húngaros e os conselheiros do primeiro-ministro húngaro conheçam bem melhor o liberalismo patrocinado por Locke, Montesquieu, Smith ou Hayek do que esses libertários ou conservadores “anglo-saxónicos”. Visto isto, examinemos parte do pensamento de dois autores que concorrem, na literatura de filosofia política e de ciência política, pelo título de fundador do liberalismo. Terei sempre como base o livro do Professor Contreras.
A defesa da família no liberalismo: John Locke
Os estudiosos de filosofia e de ciência política devem estar familiarizados com as justificações e o valor que liberalismo conservador (que é o liberalismo original) de John Locke dá ao direito de propriedade. Mas Locke, não nos devemos esquecer, expressa ressalvas quanto à aplicação da lógica do mercado a qualquer esfera da sociedade: para Locke, se o mercado funciona adequadamente na produção de bens (e serviços), este não deve presidir às relações familiares. O filósofo e inspiração intelectual da Revolução Gloriosa de 1688 jamais concordaria com uma visão mercantil da família, na qual o sexo não passa de um bem ou serviço relativamente ao qual as pessoas se podem vincular mediante contratos. Ou pelo menos opor-se-ia a que o sexo fosse valorizado ou promovido pelo governo civil enquanto objeto de um contrato. A natureza e o propósito da “sociedade conjugal” (conceito lockeano referente ao matrimónio e à família), que andam em torno do dever, são diferentes das do mercado, que se baseiam na autoconservação. O matrimónio jamais deve ser tratado, no pensamento lockeano, enquanto contrato pela sua potencialidade excecional em produzir filhos e renovar gerações e por, ao contrário do que se passa nas relações de mercado, não poder partir do princípio da igualdade básica entre todos os participantes ou membros. Na família, as crianças são muito mais vulneráveis do que o pai ou a mãe, daí que os constituintes da família não possam ser tratados como simples agentes da oferta e da procura intervenientes num mercado concorrencial. Aqui cito excertos da obra Dois Tratados do Governo Civil a que o Professor Contreras recorreu, mas na edição portuguesa (publicada pela Edições 70 no ano de 2018): “A sociedade conjugal resulta de um pacto voluntário entre o homem e a mulher, e apesar de consistir principalmente na comunhão e direito de cada um dos cônjuges ao corpo do outro, como o seu fim principal, a procriação, torna necessário, no entanto, esta sociedade traz consigo o apoio e a assistência mútua, assim como uma comunidade de interesses, por serem necessários não só para unir o cuidado e o afecto, mas também para os seus filhos, que têm o direito a serem alimentados e sustentados por eles até serem capazes de se prover a si mesmos” (pág. 284). Locke continua: “(…) aqui (…) reside a razão principal, senão a única, pela qual na espécie humana o macho e a fêmea estão ligados por uma união mais prologada do que as restantes criaturas, a saber, porque a fêmea é capaz de conceber, e de facto normalmente volta a engravidar e dá à luz um novo filho, (…)” (pág. 285).
Até aqui, apercebemo-nos de que a família (ou “sociedade conjugal”), para Locke, tem a sua razão de ser na procriação e na continuação da espécie. Mas Locke não fica por aqui, adicionando a essas duas funções da família a insubstituibilidade educativa e a eficiência económica: “é impossível não admirar a sabedoria do grande Criador, que ao dar ao homem a faculdade de prever e a capacidade de guardar para o futuro, assim como a de prover as necessidades presentes, estabeleceu a necessidade de que a sociedade entre homem e mulher fosse mais duradoura do que a sociedade entre macho e fêmea nas outras criaturas, de modo a encorajar a sua indústria e unir melhor o seu interesse, com vista a prover e a acumular bens para a descendência comum, algo que seria fortemente perturbado por associações incertas ou por dissoluções fáceis e frequentes da sociedade conjugal” (págs. 284-285). Portanto, o encorajamento a ter que alimentar os filhos e os membros dependentes e mais frágeis, que, segundo o próprio Locke, estimula a produtividade e a criatividade, é um outro aspecto reservado à família.
A defesa da família no liberalismo: o Barão de Montesquieu
A relevância da família no pensamento do Barão de Lá Brède e de Montesquieu, mais conhecido como Montesquieu, é associada à preferência que revelava pelo republicanismo romano clássico face a outros regimes, tais como o despotismo e a monarquia. Mas deixemos a classificação dos regimes e as caraterísticas de cada um deles para outra oportunidade. Voltarei a seguir-me pelo livro mencionado do Professor Contreras, sendo que voltarei a apresentar excertos da edição portuguesa de outra obra marcante do liberalismo: O Espírito das Leis (publicada pela Edições 70 em 2017).
Tal como Locke, Montesquieu é consciente do papel central do matrimónio na conservação da sociedade. Nas palavras do próprio pensador liberal francês, a “obrigação natural que tem o pai de alimentar os seus filhos estabeleceu o casamento, que declara aquele que deve cumprir a sua obrigação” (pág. 592). Por falar nas tendências verificadas nas estruturas familiares em Portugal e noutras sociedades ocidentais, Montesquieu teria algo de estridente a dizer. Sobre as famílias monoparentais, Montesquieu pronuncia-se da seguinte maneira: “Essa obrigação (dos pais diante dos filhos ou dos ascendentes diante dos descendentes), entre os animais, é tal que a mãe pode normalmente supri-la”, sendo que essa “obrigação é muito mais extensa entre os homens: os seus filhos possuem a razão, mas esta só lhes vem gradualmente”. Portanto, aos filhos dos seres humanos “não lhes basta alimentá-los, é preciso também conduzi-los” (pág. 592).
E que comentários faria Montesquieu sobre a crescente banalização do matrimónio e a sua substituição progressiva pela coabitação e por relações mais instáveis e curtas? Também desaprovaria essas duas realidades, tal como podemos ver nas suas seguintes palavras: as “uniões ilícitas contribuem pouco para a propagação da espécie”. E fala também, ainda dentro do mesmo tema, dos filhos ilegítimos ou “bastardos”: nas “repúblicas, onde é necessário que os costumes sejam puros, os bastardos devem ser ainda mais odiosos do que nas monarquias” (pág. 592). Podemos igualmente ter uma ideia do que pensaria o Barão de Lá Bréde sobre o declínio da instituição conjugal: “César atribuiu recompensas a quem tivesse muitos filhos; proibiu as mulheres que tivessem menos de quarenta e cinco anos, e que não tivessem maridos, nem filhos, de usar pedras preciosas e de se servir de liteiras: um excelente método de atacar o celibato pela vaidade. As leis de Augusto foram mais pressionantes: impôs novas penas a quem não fosse casado e aumentou as recompensas para quem o fosse e para quem tivesse filhos” (pág. 605). Portanto, em Montesquieu, tal como em Locke, descortinamos uma noção do matrimónio como indispensável para a conservação da sociedade.
A proteção da família no governo Orbán
Para Balaz Orbán, no seu livro The Hungarian Way of Strategy, são as medidas de apoio às famílias as manifestações mais recentes de preocupação do governo húngaro por esta comunidade. Mas pouco depois de ter assumido o poder, o governo Orbán foi autor de iniciativas legislativas que enquadraram as políticas que foram implementadas na Hungria até aos dias de hoje: a Lei da Família, adoptada em 2011, é explícita quanto à família como sendo “uma prioridade e uma comunidade a ser protegida”; a Constituição da Hungria de 2011 refere-se à família como a estrutura mais importante para a coexistência dos húngaros e considera que ela é fundada no casamento e na relação entre os pais e os filhos; uma lei cardinal (lei que só pode ser alterada por uma maioria de dois terços do Parlamento) protege a família e expõe esta comunidade como “autónoma” e anterior a qualquer lei ou estado, dotada de fundamentos morais e como “o recurso nacional mais importante da Hungria”. Essa lei cardinal é clara na preferência pelo crescimento e desenvolvimento de um ser humano numa família (“crescer numa família é mais seguro do que qualquer outra possibilidade”) e pelo casamento como fundação da mesma, que é definido como “uma união com longevidade baseada no amor mútuo e no respeito”, pelo que deve ser sempre “considerada com grande estima”. A família, ainda segundo esta lei, concretiza as suas funções quando se verifica uma “relação duradoura e firme entre mãe e pai” e uma “responsabilidade pelos seus filhos”.
Numa vertente um pouco mais prática, essa lei cardinal esclarece que o “Estado deve promover a reconciliação entre trabalho e vida familiar”, pelo que deve assegurar que “o compromisso em ter filhos não deva resultar no empobrecimento da família”. E Balaz Orbán continua com as suas palavras: “A mentalidade do Estado, mas também dos empregadores, tem de ser transformada. Toda a gente precisa de se tornar amigável para a família”. Ao longo da década passada, mesmo antes do ano de 2019 (quando se implementou o Plano de Acção de Proteção da Família), o governo húngaro não hesitou em tomar medidas para enfrentar os seus desafios económicos, sociais e demográficos. Introduziu, portanto, um subsídio fiscal familiar, apoios financeiros para as famílias que planeiem ter não menos que três filhos (que se podem traduzir no perdoo parcial ou total de juros de dívida do pagamento da habitação) e um auxílio-creche financeiro (que assegura que os pais possam trabalhar a tempo inteiro e que vejam ao seu alcance ajudas financeiras para os cuidados dos seus filhos), deduções fiscais (com uma determinada duração) para empregadores de mães de crianças em tenra idade, entre outras medidas.
Observações finais
Atendendo às palavras do primeiro-ministro húngaro Víktor Orbán, é visível a sua desilusão com o que convencionalmente se chama de “democracia liberal”, ou pelo menos com as definições mais correntes deste conceito. Isto porque tomar um regime como estes pode ser um obstáculo ao desenvolvimento de um país na cena internacional e porque pode limitar as opções a serem tomadas na reconciliação entre várias esferas da vida dos cidadãos, nomeadamente as do trabalho ou emprego e da família. Depois, lancei a questão sobre se, precisamente por conceder à família uma importância destacada entre as instituições existentes e por privilegiar determinadas estruturas familiares sobre outras e uns objectivos relativamente a outros dentro das famílias, a Hungria de Orbán poderia ser considerada um regime “iliberal”. Comprometi-me, portanto, a tentar demonstrar que a posição do actual governo húngaro relativamente à família não deve sustentar o argumento segundo a qual a Hungria tem deslizado em direção a um regime adverso ao liberalismo, mesmo que o seu primeiro-ministro e os oficiais húngaros prefiram o conceito de “democracia iliberal” para designar o que está em vigor na Hungria. Para isto, discorri sobre o contributo de dois pensadores, geralmente identificados como os fundadores do liberalismo, até do liberalismo clássico, para o enquadramento da família numa sociedade liberal: Locke e Montesquieu.
O que se passa na Hungria (não pensemos agora em leis sobre os media e a relação de Orbán com a China) é um exemplo de como as leis e as políticas (que são fundamentadas pelas primeiras) podem ter um efeito pedagógico sobre as crenças e os costumes. Com a ousadia de um governo com uma visão histórica abrangente e de longo prazo (pelo menos em política interna), a taxa de fecundidade subiu em mais do que um quinto desde a primeira década deste século, se bem que ainda esteja distante do valor da taxa de substituição. A taxa de divórcios sofreu uma queda, ao contrário da taxa de nupcialidade, o que demonstra que os governantes húngaros e a sociedade civil estão a colaborar na reorientação do país. E, para isso, é preciso que uma sociedade admita preferências, algo que o liberalismo clássico, como vimos, admite e prevê.