Visitei o bairro periurbano de Mpuruni, a pouco mais de uma hora a caminhar a partir da cidade de Quelimane, no norte de Moçambique. À entrada da povoação encontrei um professor do primeiro ciclo. No terreno em frente à escola, edifício rudimentar de três salas maticadas de pau-a-pique que eles mesmos construíram, ensinava a um grupo de crianças da segunda classe, meninas e meninos, a cultivarem para proveito próprio. Entre outros assuntos, recomendou que falasse com ‘um mais velho que tem muitas estórias’.

Encontrei-o numa das primeiras casas. Dante Inácio Mora faz de fiel depositário da história de Mpuruni. Nos tempos, era uma quinta propriedade de Dúlio Ribeiro, colono português cujo nome ainda ecoa nas redondezas. Dessa herança não se notam vestígios. A exceção é talvez a estrada de terra batida de acesso à povoação.

Ainda criança, por volta de 1946, começou a trabalhar ali como pastor. O contacto foi estabelecido pelo patrão do seu pai, então empregado numa oficina na cidade. Quando chegou, o proprietário havia falecido. Filomena Ribeiro, a viúva, dirigia a propriedade coadjuvada por dois portugueses brancos. O senhor Martins, responsável pela parte administrativa, e o senhor Marques, capataz que, quando não era atendido de imediato, chamava ‘filhos da puta’ aos trabalhadores negros, sem que fosse seu hábito tocar no assunto da raça. Havia ainda o senhor Pereira, português que vinha diariamente recolher o leite que abastecia a cidade de Quelimane.

À época, o velho pastor ganhava trinta escudos. Explicou que dava para gerir bem a sua vida e que até ‘Era muito dinheiro’. Hoje quase nada lhe resta.

A patroa apoiava os trabalhadores quando era preciso. Em caso de doença, ir ter com eles ou familiares se a casa tivesse acesso a carro para levá-los ao hospital. No fim da jornada de trabalho obrigava-os a irem visitar os seus parentes hospitalizados. Também criou uma escola na quinta, frequentada pelos filhos dos trabalhadores que eram ‘muitos’ e outras crianças.

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À época, a propriedade tinha gado suíno, bovino e produção agrícola suficientes para abastecerem a cidade de Quelimane. Para além do trabalho cuidado, da cria dos animais ao tratamento da terra, havia um sistema de desinfeção das viaturas que acediam à reserva para proteger os animais de doenças contagiosas, animais marcados a ferro com ‘DR’, de Dúlio Ribeiro.

Desses dias que hoje lhe parecem de fantasia, contou ainda algumas das suas aventuras. Certo dia um dos bois passou a jornada a lavrar de sol a sol. Quando soltaram a canga, o animal fugiu. Andou desaparecido muito tempo até que o pastor o avistou numa quinta próxima. Disse ao proprietário, também português branco, que aquele animal era da sua patroa. Conhecia-o muito bem à distância. O sujeito negou. O animal era dele. Dante Inácio Mora aproximou-se e mostrou-lhe o ‘DR’ no dorso. No dia seguinte, a mando da patroa, foi buscá-lo. Conseguiu imobilizar o animal com uma corda atirada ao ar e trazê-lo de regresso à quinta. O boi retomou o trabalho. Outro dia inteiro. No final, o pastor viu que continuava com jeito de fugir. Foi ter com a patroa e disse-lhe que o melhor era abaterem o animal. Filomena Ribeiro concordou. Da venda, o pastor recebeu uma boa recompensa, vinte escudos.

Mais tarde, ele e um seu colega foram encarregues de levar ao matadouro da cidade um conjunto de cabeças de gado suíno e bovino. No regresso, preparavam-se para entregar o valor da venda. Filomena Ribeiro disse-lhes que guardassem o dinheiro até ao dia seguinte. Ansioso, o pastor passou a noite com muito dinheiro em casa. Logo pela manhã, em conjunto com o companheiro apresentaram-se no escritório. O montante foi conferido pelo responsável administrativo, o senhor Martins. Receberam ordens para irem trabalhar. Dias depois, a patroa mandou chamá-los para lhes entregar um envelope fechado. Surpreendidos, Filomena Ribeiro acrescentou: ‘Dividam entre vocês’. A patroa explicou que os tinha posto à prova, uma vez que sabia o valor exato em dinheiro que iriam arrecadar e queria também saber o que é que fariam com tanto dinheiro numa noite. Como foram honestos, tinham direito a uma recompensa. Abandonado o escritório, abriram o envelope: duzentos escudos! Nunca Dante Inácio Mora recebeu tanto dinheiro.

Memórias gravadas por uma vida. Por alguma razão será.

Entretanto, com a independência de Moçambique, em 1975, os brancos foram embora. Mas Filomena Ribeiro ficou. Continuaram a trabalhar. Segundo o velho pastor, até que num dia de 1980 apareceram na quinta, de repente, uns agentes do governo da Frelimo chefiados pela senhora Lúcia, casada com o senhor Serôdio, ambos brancos dos serviços de veterinária. Cortaram os vários acessos à quinta e só permitiram que a proprietária entrasse e saísse pela estrada da sua habitação. As demais estavam-lhe vedadas.

Sem reagir, o pastor e demais trabalhadores viram o que estava a acontecer. Não percebiam as razões e temiam a Frelimo. A quinta estava a ser expropriada. O gado levado. Só nessa transferência, das oitenta cabeças de gado que então ainda existiam, quarenta terão morrido.

No fundo, interpreto eu, era um assunto entre brancos. O habitual conflito edipiano que, por vezes, ainda ouvimos em Moçambique. Os maiores carrascos dos brancos portugueses ditos ‘colonialistas’ foram outros brancos portugueses ‘revolucionários’. Os últimos contam-se entre os que mais ativamente, à época, alimentaram o ‘anti-portuguesismo’ e a ‘ação de limpeza’ da SNASP (Serviço Nacional de Segurança Popular), a versão pós-colonial africana da PIDE.

Quis o destino que eu visitasse o local a 24 de julho de 2015, precisamente o dia em que se celebravam os quarenta anos do ‘Dia das Nacionalizações’ decretado pela então pujante Frelimo.

Em 1980, a proprietária expropriada tentou contactar o presidente da então República Popular de Moçambique, Samora Machel. Não a quis atender. Filomena Ribeiro foi a Maputo e acabou por ser recebida. Terá ouvido do Presidente “Também estou a trabalhar”, uma vez que era isso que Filomena Ribeiro alegava. Ter-lhe-á dito ainda Samora Machel que, se ela quisesse, mandava vir a Quelimane um barco para que pudesse levar os seus bens de casa, não os da quinta, como o gado, posto que esses eram propriedade do estado moçambicano. Seguiria com eles para Maputo e, depois, se quisesse, para Lisboa. A patroa foi-se embora. O pastor nunca mais a viu.

A antiga quinta de Dúlio Ribeiro, estatizada e coletivizada, em pouco tempo deixou de produzir e poucos anos depois acabou por ser desmantelada, como muitas outras empresas. O pastor, Dante Inácio Mora, há muito que tinha a sua casa construída no terreno. Tem vivido sempre no mesmo sítio. Nos primeiros momentos de desativação da quinta, sem gado e sem trabalho, passou a fazer de guarda. Mais tarde convertido em líder comunitário. Foi quando começaram a aparecer famílias a pedirem-lhe autorização para construírem uma casa ali, no antigo terreno da quinta. Foi cedendo. Agora são mais que muitas as casas maticadas de pau-a-pique.

No antigo espaço de uma quinta colonial próspera hoje cresce mais um bairro periurbano pobre, Mpuruni, no qual os moradores, sobretudo as mulheres, se dedicam ao cultivo familiar de batata. Os terrenos são pequenos, muito parcelados. As condições de trabalho e de vida são bastante precárias. O acesso à água uma disputa. Visitei o local em época de sementeira.

O professor, à entrada da povoação, já se tinha lamentado: ‘Aqui o problema são os casamentos prematuros. Estudam connosco, mas depois não prosseguem os estudos na cidade. Ficam só assim. E nós temos quinhentos e tal alunos’. Que aprendem em três míseras salas de aulas, eles que ignoram como eram as salas de aula mandadas edificar por Filomena Ribeiro.

Mais um filme de como se fabrica miséria para dar e durar para glória de revoluções e revolucionários. A versão do antigo pastor, Dante Inácio Mora, pode conter erros. A memória pode atraiçoar. Mas o sentido que atribui à vida é indisputável. Preso à mesma terra desde 1946, ele tem razões de sobra para ter saudades do seu mundo ideal que viu o tempo esfrangalhar, os dias da quinta dos animais de Quelimane. Onde e quando ‘havia respeito’ e ‘a vida corria bem, não é como hoje’.

Talvez um dia se percebam as razões de poucos (quase nenhuns) quererem saber destas memórias, os que esperam que os que as conservam vão perdendo a vida. Muitos já os satisfizeram. Assim será bem mais fácil transformar a colonização num ‘colonialismo’ que se limitou a desgraçar os povos africanos.

Pouco falta para que a história de Portugal do século XX além do torrão europeu, onde foi decisiva, se assemelhe a charlatanice.

PS. Agradeço aos leitores a correção do nome de Dúlio Ribeiro