1 A primeira coisa que deve ser questionada neste processo de revisão constitucional é a sua legitimidade. Posso estar esquecido, mas não me recordo de, nas eleições, alguma vez ter sido discutida a revisão constitucional. Não me recordo de os partidos – sobretudo os maiores e principais – terem anunciado irem promover a revisão constitucional ordinária e porem em debate propostas. Ou seja, o assunto não esteve nas eleições. E, se não esteve na agenda das eleições, não está na agenda da democracia.
Agora, de repente, após um toque de clarim que empurrou todos a irem a jogo, assistimos à apresentação consecutiva de projectos de revisão como numa passagem de modelos. Entrou tudo, num bruaá, a espreitar as novidades de A ou B, as criações de C ou D. Não devia ser assim. O essencial, o principal, devia ser conhecido, uma vez que, como é próprio das democracias, teria sido apresentado, defendido e discutido nas eleições. Nós teríamos sabido. Nós teríamos escolhido.
Os deputados e grupos parlamentares podem usar o poder formal para desencadearem este processo. Sem dúvida. Mas, sendo democratas, percebem certamente que não têm legitimidade política, nem legitimidade moral para o fazer. Não houve qualquer debate constitucional na sociedade portuguesa orientado para esta legislatura.
A Constituição prevê que a Assembleia da República pode efectuar uma revisão constitucional cinco anos depois da última revisão ordinária. O Parlamento poderia tê-la feito várias vezes desde 2009. Nunca o fez. E nunca o fez, justamente porque nunca cresceu na sociedade portuguesa vontade significativa de nova revisão ordinária da Constituição, nem sentimento dessa necessidade premente.
Houve uma questão ou outra em que a ideia aflorou, mas, desde 2009, foram sempre mais fortes as posições contrárias a uma revisão do que a seu favor. Se assim não fosse, a onda da revisão teria crescido naturalmente antes de cada eleição legislativa, perfilando com antecedência a respectiva agenda, e ter-se-ia manifestado democraticamente na campanha eleitoral. Seria, aliás, uma das matérias mais importantes da legislatura. Nada disto aconteceu.
Esta revisão foi lançada pelo método dos tirinhos, popular nas feiras, mas não em parlamentos democráticos. Na legislatura anterior, em 2020, André Ventura (Ch) já tinha mostrado singular apetite pelo tema: apresentou nada menos do que cinco projectos de revisão constitucional. Nenhum partido respondeu à chamada. Quatro projectos foram retirados e um, depois de um processo a solo, acabaria por caducar no fim da legislatura. Também Cotrim de Figueiredo (IL) apresentou um projecto de revisão, que retiraria meses depois.
Agora, o Chega deu novamente o tiro de partida para abrir o processo de revisão, apresentando um projecto a 6 de Outubro. E desta feita, como que coordenados, todos os demais partidos foram atrás, apresentado os seus projectos em 11 de Novembro: BE, PS, IL, Livre, PCP, PSD, PAN. Nenhum partido havia proposto revisão constitucional nos seus programas eleitorais das eleições de 30 de Janeiro – nem sequer o Chega. Só um fala na revisão, o PCP – mas para se lhe opor. É a evidência escrita da mais completa ilegitimidade política. Andaram a enganar-nos.
A Constituição de 1976 resultou de vibrantes eleições constituintes, em 1975, a que afluíram 91,7% dos eleitores. Foi indiscutivelmente um acto de liberdade e de afirmação democrática. Agora, prepara-se um perverso exercício autocrático duma dúzia de poderosos que querem costurar a Constituição à mercê dos poderes do sistema, sem a mais leve sombra de mandato democrático.
Isto não é democracia representativa. Os deputados, nesta matéria, depois da eleição de 30 de Janeiro, representam quem e o quê? Representam-se apenas a si próprios e a quem os conduz. É um assalto à cidadania. É o irregular funcionamento das instituições democráticas.
2 Recentemente, apenas dois temas circunscritos tinham suscitado alguma propensão de abordagem constituinte: a emergência sanitária em contexto pandémico e os metadados. Estas questões, porém, seriam, quando muito, desencadeadoras de uma revisão extraordinária da Constituição, como tivemos em 1992 (Tratado de Maastricht), em 2001 (Convenção do Tribunal Penal Internacional) e em 2005 (referendo sobre tratados europeus). Aquelas questões, sendo específicas, não eram alavanca para a revisão constitucional ordinária.
Por outro lado, se havia intenção de levá-las à Constituição, também essas matérias (pandemia e metadados) deveriam ter estado no debate político-eleitoral, sob pena de fraquejar a legitimidade para as tratar. Primeiro, porque o exercício de poderes constituintes pela Assembleia da República é questão de primeira grandeza da legislatura e não matéria para esconder no bornal. Segundo, porque qualquer daquelas duas matérias contende ou pode contender com direitos, liberdades e garantias e não é admissível, em democracia, que os deputados, querendo mexer aí, não tenham anunciado ao que iam.
Dependendo, como é óbvio, da extensão e intensidade da regulação, é grave lesão do Estado de direito democrático e traição à soberania popular que um Parlamento restrinja direitos constitucionais dos cidadãos sem, com antecedência, nas eleições ou em referendo, o ter debatido clara e publicamente. Repito: seria um assalto à cidadania.
3 Quanto mais se puser na Constituição, provavelmente menos livres vamos ficar. A Constituição é um brinquedo perigoso nas mãos de políticos assim, prestes a impor sem terem ouvido o povo. A Constituição, enquanto suprema lei, também pode ser amarra. A regionalização é um belo exemplo para o entendermos: porque a Constituição fala de mais quanto à regionalização, nada podemos fazer fora daquele modelo e processo. O poder legislativo ficou amarrado. Não se pode fazer, não se pode deixar de fazer e não se pode avançar para outros caminhos.
Os projectos de revisão constitucional apresentados carecem de análise cuidada. Mas salta à vista que parecem confundir a Constituição com um altar de promessas ou a estátua do Dr. Sousa Martins, sempre cheia de pedidos e de ex-votos, em intenso culto popular. A Constituição não é um bengaleiro para cada um pendurar o seu cabide. Não é para ficar jeitosa, bonitinha ou “completa”. É para assegurar a democracia, a liberdade e o Estado de direito. E, porque é de todos e acima das leis, convida à convergência e ao essencial.
Há lá de tudo, para lavar a alma e disfarçar a incapacidade e a incompetência, como na “erradicação da pobreza” e nas “necessidades de desenvolvimento específicas do interior”. Nas mãos daqueles que desmantelaram o quadro administrativo do interior, que o votaram ao abandono e favoreceram a desertificação, o interior vai desenvolver-se por uma linha mágica na Constituição? Este tema, tal como a pobreza, precisa de políticas públicas. E a erradicação da pobreza também precisa da economia. Se voltarem a rebentar a economia, ou a mantiverem a patinar, a pobreza continuará ou agravar-se-á. É a economia, é a economia… não uma Constituição hipocritamente piedosa.
Há lá de tudo, na onda do politicamente correcto, como “bem-estar animal”, “combate às alterações climáticas”, “direito de todos a uma alimentação acessível, de qualidade, saudável e sustentável”. Que tem o clima com a Constituição? E os animais? E, no restaurante (ou na cantina), em vez do menu, pediremos a Constituição?
Há lá de tudo, ousando até a mudança de regime, como aconteceria se mudasse o regime do mandato do Presidente da República. Alguém se acha mandatado para mudar o regime? A sério?
Se tudo não passar de uma Convenção estudantil, não há problema – até pode ser interessante. Mas revisão constitucional? Nem pensar.
Maior exemplo do desatino é o vendaval que está preparado desabar sobre o princípio da igualdade. O artigo 13.º da Constituição, além do enunciado geral, que cada vez mais parece essencial e suficiente – “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.” – é, depois, acrescido, no n.º 2, por extenso arrazoado de temas pelos quais não se pode ser discriminado. Hoje, já vai em 11 termos: ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, orientação sexual. Se seguirmos os vários projectos de revisão (ignorando já que o termo “raça” seria substituído por “etnia” ou “pertença étnico-racial”), o arrazoado galgaria para 20 temas, aditando-se mais nove: idade, género, identidade de género, expressão de género, características sexuais, características genéticas, estado de saúde, deficiência ou incapacidade.
Vê-se que há quem prepare a imposição constitucional da ideologia de género, o que seria de gravidade extrema e uma violência antidemocrática, além de ser matéria que não se quadra com o princípio da igualdade. Apenas se quer instrumentalizar este princípio para servir de grilheta e contra a liberdade.
Se formos tão especiosos quanto o enunciado do princípio se vai tornando, pode reclamar-se também uma menção directa aos daltónicos, aos albinos, aos gagos, aos alérgicos, aos canhotos, a tantos outros e, inaugurando a moderna incidência constitucional sobre a indústria do calçado, aos de pé egípcio, grego ou romano. Pior: ficaria a faltar o caso inquietante do Sargento Ezequiel.
Uma vez, ao sair do duche, o Sargento Ezequiel, foi abordado por um soldado, que lhe observou: “Ó meu Sargento, tem aí um sinal debaixo do peito esquerdo. Devia ver isso. Pode ser coisa má.” O Sargento respondeu: “Ah! não. Isto é coisa de nascença. Não tem problema. É um terceiro mamilo. Às vezes, acontece.” O soldado ouviu e não se riu. Mas, passadas duas horas, todo o quartel já sabia que o Sargento Ezequiel tinha três mamilos. Ficou conhecido como o “Sargento Três Tetas”, objecto frequente de risinhos e dichotes.
Se, abraçando a ciência deste problema (a politelia), os deputados activistas mexerem na Constituição e não arranjarem também um cabide para o Sargento Ezequiel e outros de mamilo a mais, é porque, realmente, não há direito.
4 Esta revisão constitucional tem tudo para correr mal. Em termos políticos e jurídicos, formou-se a Tempestade Perfeita. Grande será a responsabilidade política de quem a desencadeou. Se o processo não for interrompido, reduzido ao mínimo essencial ou reorientado, as condições estão reunidas para virmos a ficar com uma Constituição ainda mais regulamentar, mais extensa, mais programática e mais ideológica do que hoje – ou seja, uma Constituição pior. Pior, é claro, em perspectiva democrática.
Uma Constituição não é como o Regulamento do Plantio de Nenúfares em Tempo Invernoso. Não é o espelho de estudos exóticos e saberes raros, que saltam de repente das mochilas de activistas e são entregues a um qualquer exercício legislativo burocrático. A Constituição é a lei fundamental, caramba! É a lei das leis, a lei constitutiva, a primeira lei expressão da soberania popular.