Tenho há muito tempo vontade de escrever sobre o General Ramalho Eanes. De aparência simples e linear, o seu percurso provou que as aparências iludem, e revelou um homem público e político extremamente complexo e multidimensional. O seu percurso é essencial para compreender a história da democracia portuguesa. Como se viu na entrevista desta quarta feira na RTP, essa marca persiste ao cabo de 85 anos de vida e quase 45 de democracia.
Não subscrevo todo o passado político do General Eanes. Posso dizer que, caso tivesse idade, não lhe teria confiado o meu voto. Não apreciei o dirigismo presidencial que praticou, apesar da distância mo ter ajudado a compreender melhor. Desejei que fosse diferente em Camarate, embora perceba a delicadeza daquele momento da vida nacional, e o preço a pagar para se evitar uma guerra civil. Achei a sua incursão na política partidária uma péssima iniciativa a todos os níveis, bem como a cultura de um eanismo supostamente acima das grandes correntes políticas e filosóficas, como uma tentação terceiro-mundista; terá pago caro por isso, e bem. De modo igualmente controverso, a desejada manutenção do Conselho da Revolução, mostrou uma visão atávica de um Portugal desesperado por progresso e por uma democracia sem o jugo castrador dos militares da revolução.
Por outro lado, é incontornável a sua acção ao lado de Jaime Neves e outros bravos, possibilitando ao país a democracia que merecia, e há demasiado tempo se adiava. Bastaria o 25 de Novembro para relativizar os passos mais dúbios que acima referi. Persistiu em ser sempre o líder das soluções que privilegiassem a sua interpretação do interesse nacional a cada momento. Governou sempre com absoluta probidade. Escolheu sempre com coragem, alicerçado em convicções profundas de missão e entrega ao país que o escolheu. Olhando para trás, não é pouco. À luz do presente, é notável.
Apesar de ter tudo isto em conta, todo este peso político e histórico, é o General Eanes pós- Presidência que me fascina. É o homem em permanente evolução e naturalmente constituído em reserva moral da república por mérito próprio. Recusando prebendas e privilégios, Eanes decidiu dedicar-se ao estudo e transformar a experiência acumulada em conhecimento estruturado, validado e partilhável. A sua tese de doutoramento, na Universidade de Navarra é testemunho desta vontade de pensar e interpretar o país em que foi protagonista. É uma peça fundamental para a compreensão deste período português. Certamente por influência de Manuela Eanes, deu-se um percurso espiritual, menos visível aos mais desatentos, fundamental na humanização do homem de farda e rosto fechado atrás de uns óculos escuros. A par do estudo, da fé, da reflexão e da produção de pensamento, há uma persistência na pedagogia do serviço público, na recusa da corrupção endémica que mina o país, no alerta avisado sobre os diferentes perigos que ameaçam a qualidade da democracia. Tudo feito com uma gestão sábia em número de intervenções e no seu tempo. Há, por isto mesmo, a percepção pública de que quando Eanes fala, vale a pena ouvir.
Se há homem no país que sabe de política, é Ramalho Eanes. Daí a profunda importância da sua entrevista à RTP. Quem não apreendeu a entrevista como uma verdadeira revolução, ficou muito aquém do que ali se passou. Nenhuma palavra em Eanes é casual, cada virgula é pensada, cada pensamento ponderado e maturado, cada ideia absolutamente intencional.
Sim, Ramalho Eanes provocou um terramoto no sistema. Não caio na facilidade de dizer que fez um novo 25 de Novembro, por que os tempos são outros, as ameaças à democracia são distintas e o modo é obrigatoriamente diferente. Em vez de aparecer em cima de um Chaimite, apresentou-se apoiado em 85 anos de experiência e inabalável firmeza. Em vez dos óculos escuros e da cara fechada, um olhar profundamente humano e uma expressão próxima. A persistir, o espírito de serviço, a devoção à pátria e uma coragem física que não se finge e é distintiva dos grandes líderes.
O que fez então Eanes de tão extraordinário nesta quarta-feira de peste?
Como há muitos anos ninguém se atrevia, Eanes trouxe Cristo para o centro da política. Começou por falar de forma profunda sobre a necessidade urgente do regresso do amor. Explicou com clarividência como só com o amor ao próximo – sim, falou sempre do próximo e nunca do outro – a sociedade ocidental pode recuperar e encontrar um caminho sustentável. Explicou os perigos do individualismo, da ganância, do hedonismo, da fractura social; anunciou o fim de um tempo inquinado. Falou de prontidão, de serviço sem reservas, de entrega abnegada, de solidariedade consequente. Defendeu as Forças Armadas com louvor e exigência. Terminou com a frase que emocionou o próprio e os homens de boa fé, asseverando que, em caso de necessidade, prescindiria da sua vida para que outros continuassem a viver. A grande marca distintiva, é que todos nós sabemos que falava muito a sério. Fátima Campos Ferreira cometeu a inconfidência de nos dizer porque estava o General em estúdio, e não em Skype com mais uma bela estante em fundo. Nesta altura, já nada surpreendia. Tudo o que era grande era natural.
Sim, Ramalho Eanes foi ao canal público de televisão, em horário nobre, apelar ao fim da decadência do relativismo ético, do individualismo mortífero, da ganância asfixiante, da soberba da autossuficiência. O país parou para ouvi-lo falar da urgência do regresso de Cristo ao centro de tudo, como único caminho com saída e garantia de futuro, por outras palavras, de luz, salvação e vida.
Estaremos à altura da nova revolução?