A 25 de Dezembro de 1991, a URSS deixava de existir. Chegava ao fim, pela mão de Mikhail Gorbatchev, o sonho de um mundo socialista que tinha nestas repúblicas soviéticas o seu farol. Ao longo dos sessenta e nove anos que durou, a URSS definiu, juntamente com os EUA, o ambiente mundial, criando, apesar da tensão, um período estável de bipolaridade. O fim deste equilíbrio e o retorno a multipolaridade, depois de um curto período de hegemonia dos EUA, marcarão os tempos futuros das relações entre os estados mundiais.
Gorbatchev tentou reformar a URSS com o glasnost e a perestroika, de forma a tentar liberalizar a economia, travar a estagnação e democratizar o país. O facto é que esta visão transformadora não foi capaz de vingar e de alterar práticas enraizadas na URSS. O resultado foi o falhanço da iniciativa, dando origem a uma transição de lideranças que iria chegar a Vladimir Putin em 2000.
O período de Yeltsin, que se seguiu a Gorbatchev, aumentou o poder financeiro de vários oligarcas que ganharam influência, tomando parte nas decisões que regiam a Federação e a sua política externa. Quando chegou ao poder, por via de Yeltsin, Putin tinha que agir e fê-lo pela não confrontação desta elite, mas com a instalação os seus mais próximos nos pontos chaves do poder. Numa Rússia enfraquecida, Putin iria gerir a debilidade estratégica em que o país se apresentava, controlar os danos dela resultantes e tentar criar as bases do seu poder. Apesar destes factores, a Rússia tinha a força militar para, no contexto do pós-11 de Setembro, esmagar as forças de secessão da Chechénia. Pelo campo de treino e bases militares que aquela região do Cáucaso poderia proporcionar ao terrorismo islâmico de então, os EUA não se importaram de deixar a Rússia ter o seu momento de demonstração de força e Putin de consolidação do poder. Mesmo mais adiante, mas ainda neste contexto marcado pela luta contra o terrorismo, aquando da invasão da Geórgia pela Rússia, para não antagonizarem este país, e apesar das suas debilidades de então serem maiores que as que existiam a 24 de Fevereiro de 2022, a UE e os EUA nada fizeram.
Entendemos, em função do acima referido, que Vladimir Putin deu início ao seu mandato em 2000 com três objectivos que não eram necessariamente os seus, mas de Gorbatchev e Yeltsin:
- continuar a liberalizar os mercados, reforçando a ligação comercial aos países europeus;
- melhorar as relações com o Ocidente (encerramento de bases militares em diversas partes do mundo e aproximação à OTAN);
- centralizar o poder nas mãos daqueles que considerava serem os seus apoiantes mais próximos, iniciando um processo de verticalização e hierarquização do mesmo a partir dele.
O período Putin 2000-2004 é marcado nas relações entre a Rússia e a UE pelo Acordo de Parceria e Cooperação (APC), que entrou em vigor a 1 de Dezembro de 1997. Este acordo pretendia garantir a definição das bases legais para a promoção da democracia, do estado de direito, do pluralismo e dos direitos humanos. Apesar da sua renovação anual automática, foi sempre complexa a renegociação de novos textos. É de referir que, aquando da assinatura do APC, a Rússia tinha perdido muito do seu poder efectivo e prestígio no contexto internacional, o que mais tarde teve um impacto negativo no seu reafirmar enquanto grande potência regional e internacional.
Assim, neste período tivemos uma política externa russa em que se combinou uma visão realista de defesa do interesse nacional, com a procura de cooperação e vantagens competitivas para a Rússia, de que são exemplo a ligação a estruturas ocidentais e às Nações Unidas (ONU). Putin respondia assim às três fortes tendências internas que se manifestavam e que ele nesta fase tinha de equilibrar: a ala europeísta, a ala orientalista/euroasiática e os etno-nacionalistas.
O segundo mandato de Putin (2004-2008) marca uma inversão de atitude em relação ao Ocidente, passando do tom cooperativo para o tom antagónico. O discurso de Putin, na conferência de Munique em 2007, marcou essa mudança. Nessa conferência, Putin afirmou que o fim da guerra fria produziu muito mais vítimas e conflitos armados do que antes. Foi o afirmar que, ao poder dos Estados Unidos e à visão liberal da economia e da política, outros valores e interesses também deveriam ser considerados. A tentativa de resolver os problemas pela acção unilateral do Ocidente, causou imensas tragédias humanas o que, na visão de Putin, com uma Rússia forte não teriam ocorrido. Num ataque ao Ocidente e à OTAN, Putin afirmou que tinham desprezado os princípios básicos do direito internacional e que promoviam uma nova corrida armamentista no mundo. “Os EUA ultrapassaram suas fronteiras nacionais em quase todas as esferas, quem pode estar satisfeito com isso?” – e acrescentou que “ninguém se pode sentir seguro” nesta paisagem política. Considerando o actual cenário na Ucrânia, não deixa de ser irónica esta afirmação, porém, para o seu pensamento, estava aberto o precedente político e legal para a Rússia.
O que explica essa inversão notável? A resposta reside na tentativa de resolução de uma tensão central entre dois impulsos fundamentais, mas opostos, no projecto inicial de Putin: restabelecer um Estado forte, centralizado e controlador e construir um país próspero através da integração na economia global. O primeiro implica um forte controlo centralizado do Estado sobre os cidadãos e as instituições, enquanto o segundo implica fluxos de bens e dinheiro autónomos e horizontais através das fronteiras, ligando a Rússia a actores e jurisdições além do seu alcance formal. O primeiro impulso teria de se sobrepor ao segundo, sob pena de o seu regime ter o mesmo destino da URSS. Mais, Putin achava que qualquer efeito no seu país seria sempre o resultado do controle feito por outros, nomeadamente ocidentais, nunca resultado de uma abertura não planeada e da qual beneficiassem pessoas dentro e fora da Rússia. Putin e os seus oligarcas não concebem o conceito de “mercados”, nem nada que não seja determinado pela concepção e poder de alguém. Assim, Putin decidiu tomar em mãos o que estava além do seu controle.
Os seguintes quatro elementos complementam e detalham as razões da inversão da posição russa e ao consequente insucesso da relação da Rússia com a UE e os EUA, a começar pela defesa e segurança:
- As elites russas, orientalistas ou etno-nacionalistas, nunca desejaram uma integração plena nos moldes que a União Europeia pensou ser a desejada no pós-URSS. Gorbatchov e Yeltsin viam na abertura a Oeste a única opção para uma moribunda URSS. A aceitação da liberalização económica e política foi mais uma opção resignada de imposição de políticas, económicas e sociais – que eles viam que na Europa e no Ocidente dava resultado – do que uma racional aceitação da mudança necessária. Putin, até quando foi possível, aceitou esta inclinação para o Ocidente por debilidade. Os insucessos da abertura aos mercados e a falta de apoio europeu à mudança russa de regime, apesar de reais, são narrativas para suportar a inversão de atitude inicial de Putin. A prisão de Khodorkovski e a tomada da YUKOS materializam esta afirmação.
- Putin é um realista clássico e defende uma Rússia soberana, única e excepcional, de valores tradicionais e conservadores e uma Europa de Estados fortes e independentes, dentro de determinada hierarquia, na qual a Rússia está no topo a par com um ou outro país que considera par. Para Putin, as etno-identidades são mais ricas e plenas que qualquer tipo de integração ou intenção transnacional como é a UE, cujo modelo de igualdade (formal) entre Estados nunca lhe mereceu consideração. Para Moscovo, o Estado deve ser soberano, a Democracia deve-se moldar aos interesses políticos da Nação e não ao bem-estar e a liberdade do povo. A visão russa da ordem política europeia assenta em esferas de influência e no uso clássico do hard power para abordagens expansionistas ou simplesmente para repor a ordem dentro e entre Estados. É uma visão diametralmente oposta do liberalismo internacionalista democrático ocidental, cujo melhor exemplo é o projecto Europeu. Se a UE se revê totalmente na Globalização, a Rússia de Putin é a reacção à Globalização;
- Para Putin a OTAN é uma ferramenta militar dos EUA e a sua expansão – apesar de legitimamente desejada por estes – para os ex-territórios soviéticos uma ameaça inaceitável. É assim que os realistas vêem as instituições; como ferramentas operacionais dos Estados. A Europa tem a sua defesa e segurança à custa da OTAN. Reduzir o seu papel na Europa é bem visto por Putin, pois ele sabe que só a OTAN pode impedir a sua assertividade militar no buffer geográfico da Rússia. As suas intervenções militares não são só demonstrações de poder, são efectivas acções de recuperação do espaço natural de tranquilidade que a Rússia necessita para crescer e recuperar o seu “império”. Uma OTAN que o apoiou contra o terrorismo, mas que foi omissa na censura a outras acções, como o fez na Ucrânia em 2014 e na Geórgia é o ideal. Se ao mesmo tempo a OTAN desinvestir no espaço europeu, torna-se perfeito. Esta foi a razão central do alinhamento com Trump: debilitar a Europa. Em síntese, a Política Externa de Putin para com a UE tem uma consistência estratégica clara, sendo pautada por reacções assertivas e orientadas à quebra da coesão política no interior da comunidade transatlântica. Estes factos trazem obviamente uma enorme instabilidade para a UE e para a Europa no seu todo.
- Para Putin todos os meios são ferramentas políticas. Putin utilizou e irá utilizar a energia como ferramenta política, ignorando critérios estritamente comerciais. O mesmo fará a todas as empresas que actuem em sectores estratégicos da economia. A instrumentalização que os seus oligarcas fazem é necessária para a centralização do poder e obrigam a nacionalização da economia russa, o seu mais poderoso activo político para condicionar os países da UE. Os meios serem ferramentas é também a razão para ele não aceitar que as “revoluções coloridas” sejam manifestações espontâneas do povo, mas sim conspirações estrategicamente concebidas para diminuir o poder da Rússia.
Esta é uma visão oposta ao liberalismo democrático ocidental, que suporta a coesão da aliança atlântica e da União Europeia. É também uma visão que mostra a falência de todos os acordos pré-período 2004, que pretendiam a acomodação da Rússia aos valores ocidentais. Uma lição que o Ocidente ainda não aprendeu, a de que o seu modelo político e económico só pode ser exportado quando os outros povos os querem implementar de forma convicta. A recente invasão e guerra na Ucrânia vem provar, mais uma vez, a rejeição russa à sua integração no Mundo como uma grande democracia e economia liberal.
Rússia e UE, dois espaços debilitados no contexto da globalização, teriam mais a ganhar que a perder não estando de costas voltadas. Infelizmente, de tão diferentes, assim vão ficar enquanto a UE e a Rússia de Putin se mantiverem diametralmente opostas na sua forma de serem e no que desejam para o Mundo.