O nosso Sistema de Saúde, partilhado por todos os portugueses, assente num SNS Geral e Universal complementado por um sector privado convencionado na área dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica, e por um sector privado complementar, tem sido um pilar da coesão da nossa Sociedade, neste Portugal Democrático.

Ora este Sistema que conhecemos está em forte risco de acabar e passarmos a ter dois Sistemas Autónomos : Um baseado no sector privado e seguros de saúde, para quem os pode pagar e, outro, o SNS, descapitalizado, em permanente rutura financeira, amputado dos seus melhores profissionais para o sector privado, com longos tempos de espera para consultas e cirurgias para quem não pode recorrer a seguro de saúde por não o poder pagar. Acabará a Saúde como elemento de Coesão Nacional e passaremos a ter um grupo de portugueses que se trata de uma maneira e outro grupo que se trata de outro.

Antes de se falar do Covid já tudo isto estava em cima da mesa e consta de um rascunho de um livro, pronto antes de se ouvir falar da pandemia.

Os tempos de espera no SNS já eram os mais longos de sempre, muitos serviços estavam com falta de profissionais, não sendo substituídos os muitos que saíam para o sector privado ou para reforma. As dívidas aos fornecedores acumulavam-se. Não se perspetivava qualquer reforma para além da regressão dos hospitais em PPP para a esfera da Administração Pública, não por critério de eficiência, mas por critério ideológico motivado por interesse político. E para se manter estava dependente de um crescimento constante do PIB e da carga fiscal.

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Por outro lado, e em consequência, o sector privado estava florescente, com todos os grupos privados a abrirem novas unidades ou a ampliarem as existentes e cada vez mais portugueses a fazerem seguros de saúde. 31% segundo a Marktest , a maioria da classe média e baixa, a que se soma os subsistemas como a ADSE e o SAMS com mais de um milhão e 200 mil beneficiários

Note-se que este recurso privado ao privado foi a garantia de sobrevivência do SNS até agora. Porque se tivesse que atender todos os que às suas custas recorreram ao “Privado” o SNS já tinha implodido.

Ora, sobre isto sopraram e sopram os ventos diabólicos da pandemia com as seguintes consequências:

1) Tremendas dificuldades de financiamento do SNS, que,  se já eram muitas num período de relativo crescimento, serão incalculáveis quando se estima, entre perda de receita fiscal e aumento de encargos,  um rombo de 15 Biliões no Orçamento do Estado. Isto significa a ausência de qualquer capacidade de investimento do Estado e de renovação de equipamentos, prováveis cortes salariais, suspensão dos concursos das carreiras dos profissionais de saúde… Em suma, uma forte deterioração do ambiente de trabalho na Saúde/SNS que estimulará a saída dos profissionais para o sector privado ou para o estrangeiro. Sobretudo dos mais qualificados. Donde mais sobrecarga dos profissionais que ficam e maiores tempos de espera por uma consulta ou cirurgia no SNS… Ou seja, um forte estímulo para os utentes fazerem Seguros Privados de Saúde.

2) O fundamental e extremamente dinâmico sector convencionado (porque vive em concorrência), hoje em dia constituído por empresas bem organizadas de capital e gestão, poderá decidir não aceitar mais atrasos nos pagamentos – que já estão a ocorrer e certamente irão aumentar, pois o atraso será a única forma barata do Estado, falido,  se financiar-  nem os baixos preços pagos pelo SNS, que provavelmente sofrerão novo corte; e em consequência decidir deixar de trabalhar para o SNS e virar-se, na sua maioria,  inteiramente para o Sector dos Seguros e doentes privados.

3) O sector privado está neste momento a convidar, estrategicamente, a nova geração de Médicos de Família para constituir, também no sector privado, uma rede de cuidados de saúde primários tal como existe no SNS, em que passará a assentar e que vai ser a rede auto referenciadora para as suas unidades hospitalares.

Acontece que esta nova geração, de Médicos de Família, extremamente capaz e bem formada é vital para o SNS; para substituir a geração que há 40 anos encheu o País de Médicos de Família e que se está agora, e durante os próximos 3 anos a reformar. Se o Estado não der rapidamente perspetivas a estes recém-especialistas (USFs de Modelo B e Modelo C), por muito desejo que tenham de se manter no SNS não terão como resistir em se passar para sector privado aonde irão ganhar mais, ter melhores condições de trabalho  e onde sabem que o Sistema funciona e os seus doentes não terão que ficar um ano à espera de uma consulta hospitalar.

Escrevia-me uma recém especialista de Medicina Geral e Familiar:

Confesso que estou numa fase de fazer algumas decisões importantes e a minha ideia inicial sempre foi permanecer no SNS, ideia que infelizmente se tem desvanecido talvez por uma série de fatores que incluem, a falta de reconhecimento pelo trabalho que desenvolvemos, a desarticulação entre equipas, a divergência de formas e métodos de trabalho e a remuneração desajustada em relação à responsabilidade que o nosso trabalho exige. 

Na mesma semana que fiz exame de especialidade, fui igualmente convidada por 3 privados diferentes para iniciar consulta, com projetos ambiciosos, bem liderados, com equipas com um objetivo comum e com uma sedutora remuneração.

4) Com a constituição de uma rede própria de Cuidados de Saúde Primários o Sistema Privado fecha o arco: Financiamento por Seguros de Saúde, Hospitais e Clínicas privados para cirurgias, consultas das várias especialidades e exames, rede de CSPs auto- referenciadora para as unidades privadas.

Ou seja, criando uma oferta de todos os serviços, fidelizando e incorporando toda a população com Seguros de Saúde e Subsistemas, que progressivamente se desligará de um SNS de rotinas arcaicas, enredado numa Administração Pública paralisada e ineficiente,  e cada vez mais degradado.

Provavelmente, dentro de pouco tempo, será preciso ter um Seguro de Saúde para se conseguir ter um Médico de Família, para se poder fazer exames atempadamente, para se conseguir uma consulta hospitalar ou cirurgia em tempo útil.

E o Estado fechará o olho que olha para isto, e verá apenas com o olho que olha para as contas dos Orçamento, que saem beneficiadas com esta saída voluntária de utentes do SNS.

Acabará assim a partilha de um Sistema de Saúde único, que a todos trata por igual, símbolo único da nossa coesão e passaremos a ter dois Sistemas de Saúde e estanques. Um para os que podem e outro para os que não podem. E os que pagam começarão a questionar porque, com os seus impostos, têm que suportar um SNS que não usam…

Este é um Alerta Vermelho.

Existe alternativa? Será possível mantermos um SNS para todos? Sim existe e será possível. Exige rapidez, decisão e vontade política. Fica para o próximo artigo.