É sabido que o romance do século XVI, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, é uma obra-prima da literatura. Este texto fala sobre um fidalgo espanhol, Don Quijano, que entusiasmado pela leitura de velhos romances de cavalaria, adota o nome romântico de Dom Quixote, enverga uma armadura e, no seu velho Rocinante, cavalga sobre as terras de Espanha a fim de ajudar os fracos e lutar contra os opressores. Combate criminosos que não são mais que fidalgos, luta contra moinhos de vento e até confunde um rebanho com um exército.

Após ter sido derrotado por um nobre que o desafia, Dom Quixote percebe como os seus ideais se transformam em motivo de profunda vergonha. Por fim, vê as suas ilusões com nitidez, vive um momento de absoluta razão e morre.

Através do realismo, Dom Quixote distingue as novelas de cavalaria da realidade e ridiculariza-as. Entre interpretações muito nobres e positivas, este romance retrata como algumas ideias, que noutros tempos eram fascinantes, se tornam obsoletas e perecem, apesar de alguns fantasmas insistirem em reinventar um passado comprovadamente pesaroso.

Nesta senda, há ideias para normas legislativas sobre a segurança interna que não são baseadas em factos. Confusas e facciosas, alimentam círculos de poder, visões distorcidas e realidades paralelas, criadas por pequenos e ufanos tartufos que influenciam os Órgons desta vida. Atrás de discursos pomposos e canções melífluas, esses tartufos entram no círculo de confiança dos decisores, assumem locais e posições, e, sendo gente politicamente correta, empunham a bandeira da moral, ignoram os factos e a segurança de todos. Em suma, a liberdade de todos.

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Ainda que a ficção esteja a tornar-se realidade, não vou escrever sobre tartufos ou fidalgos, pois já aqui escrevi uma vez sobre o poder e os seus cambiantes.

Naquele artigo, contestava o poder de um diretor sobre um ministro, em que este tinha assumido o papel de ministro e aparentemente decidido tout court o futuro de uma polícia, porque e cito “como visão desta reestruturação, a PSP é extinta, o SEF é extinto e surge uma Polícia Nacional como acontece em outros países”.

Parece que afinal a PSP não é extinta, mas o SEF sim e o ocaso deste serviço, ou a “visão” do diretor, coincidia, em parte, com a decisão do mMinistro. Está inventada a panaceia.

A extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) é a base do conteúdo da Proposta de Lei n.º 104/XIV/2.ª (PdL GOV), que transfere as atribuições de natureza policial do SEF para a Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública e devolve as atribuições de investigação criminal para a Polícia Judiciária, extinguindo assim um organismo especializado.

O SEF define-se na própria Lei como um serviço de segurança que, no quadro da política de segurança interna, tem por objetivos fundamentais controlar a circulação de pessoas nas fronteiras, a permanência e atividades de estrangeiros em território nacional, bem como estudar, promover, coordenar e executar as medidas e ações relacionadas com aquelas atividades e com os movimentos migratórios.

Como tal é um órgão de polícia criminal especializado, sendo o seu corpo de inspetores formado por profissionais das mais diversas áreas académicas e com especificidades excecionais, diretamente relacionadas com a necessidade de acompanhar a constante evolução dos fenómenos migratórios e dos meios e métodos que hodiernamente as organizações criminosas dispõem e desenvolvem.

A extinção deste serviço, abre porta a uma divisão destas competências por outros serviços da administração pública, justificando para isso que há suspeita sobre quem imigra ou tenta imigrar para Portugal. Vejamos os argumentos:

Da exposição de motivos da referida Proposta de Lei, alega-se a necessidade de ter migrações seguras, ordenadas e regulares sendo necessário alterar o paradigma de relacionamento da Administração Pública com os migrantes, separando a componente administrativa da componente policial. Refere ainda a mencionada exposição de motivos que se deve “garantir que não existe qualquer suspeição sobre quem imigra ou pretende imigrar.”

Imediatamente a seguir no artigo 2º, à GNR e à PSP são atribuídas competências para “vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras”.  Confuso?

Ao avançar com esta proposta, o Governo português reincide num erro já experienciado na década de 70 e seguintes, preterindo um órgão de polícia criminal (OPC) especializado numa matéria tão sensível, em detrimento de OPC´s de competência genérica e com uma matriz securitária mais vincada.

Ficou claro no preâmbulo do Decreto Lei nº 252/2000, que Portugal reconhecia a necessidade da especialização e a urgência em adaptar a estrutura orgânica e funcional do SEF. Naquele texto é referido que o “Decreto-Lei n.º 440/86, de 31 de Dezembro, que reestrutura o Serviço de Estrangeiros e altera a sua denominação para «Serviço de Estrangeiros e Fronteiras», reiterou as atribuições no domínio do controlo documental da entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros nos postos de fronteira terrestres, marítimos e aéreos e cometendo-lhe uma nova responsabilidade: a de viabilizar uma correcta política de imigração e garantir a sua eficaz execução.”

No entanto, assume que “o salto qualitativo pretendido com o Decreto-Lei n.º 440/86, de 31 de Dezembro, não veio, todavia, a efectivar-se, nomeadamente pela inexistência de pessoal da carreira de investigação e fiscalização, à qual, criada com aquele diploma, foram atribuídas competências para a investigação e fiscalização de cidadãos estrangeiros em território nacional e, em especial, as de controlo fronteiriço. Acresce que a esta dificuldade relativa à insuficiência de meios humanos, vieram juntar-se, ao longo da década de 90, outros condicionalismos a que o Serviço teve que dar resposta.”

Amplia-se ainda no mesmo texto que “ao exposto, acresce ainda a crescente complexidade que deriva do simples facto de Portugal dever ser hoje em dia considerado, com toda a propriedade, e à sua escala, um verdadeiro «país de imigração», (…) Em suma, o cumprimento de todas as atribuições que, como foi referido, ao longo dos anos foram sendo cometidas ao Serviço, nas vertentes nacional e internacional exige o estabelecimento de um quadro normativo que «crie» um serviço de estrangeiros e fronteiras capaz de dar resposta rápida e eficaz à execução da política de imigração definida pelo Governo, bem como às exigências estruturais e conjunturais do fenómeno migratório. Tal quadro normativo corresponde à modernização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras prevista no Programa do Governo como um dos instrumentos para dar cumprimento às exigências de cooperação entre os Estados membros da União Europeia em matéria de segurança, à compatibilização desta com a liberdade de circulação, ao reforço da cooperação com os países de expressão portuguesa e ao controlo de todas as fronteiras externas, nomeadamente as fronteiras marítimas.”

Não se observa neste texto, apesar das idas datas e do facto de ser antecedente ao Acordo de Schengen (1995), logo num período com maior controlo fronteiriço, qualquer suspeição sobre quem imigra ou pretende imigrar. Este ónus é assumido por uma Proposta de Lei de 2021.

Observa-se sim e como base justificativa reiterada, o frívolo e deficiente provimento de recursos humanos atribuídos ao SEF para cumprir os desígnios das sucessivas leis que regularam este serviço até à data, comprometendo cabalmente os objetivos de uma instituição que não só regula as fronteiras de Portugal, como assegura no espaço europeu, o controlo e a fiscalização necessários decorrentes da circulação de pessoas.

Do mesmo problema enfermam a Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública e a Polícia Judiciária. A carência de meios humanos nestas forças e serviços de segurança portugueses é crónica e arrasta-se desde há muitos anos, causando nefastos entraves a um serviço público de qualidade.

Para cúmulo, não existe nenhuma previsão de contratação de pessoas na Lei do Orçamento do Estado em vigor para que estes três órgãos de polícia criminal possam fazer face às novas competências, pelo que o problema persistirá, com tendência a agravar-se em virtude do envelhecimento dos quadros e da parca transmissão de conhecimento intergeracional. Temo ainda que se faça prever uma perda dos níveis de perceção de segurança, ao ser necessário e incondicional o afastamento de profissionais das missões preventivas tradicionais, da visibilidade pública e do policiamento de proximidade para satisfazer estas novas competências.

Extingue-se, portanto, uma polícia especializada, que foi criada devido à complexidade da tarefa e ao enorme desafio que este empreendimento comporta para, no mesmo ato, dissolver as suas competências em serviços de polícia já existentes, mas sem a mesma especialização, sem experiência e, pasme-se, sem pessoas. Confuso?

Esclareça-se: perdem-se, portanto, décadas de saber acumulado e de investimento público para se redistribuir estas mesmas competências, por serviços sem experiência e com as mesmas dificuldades: falta de pessoas nos quadros.

Uma alusão perfeita ao fenómeno da crise bancária em Portugal. Muda-se o nome para que se crie a ilusão de que já não há problemas. Lamento. Há.

Num outro prisma: o aumento da confusão. Explico-me.

As leis que regulam “o quem faz o quê” nas polícias, em Portugal e na Europa, têm uma tendência natural para serem ignoradas por cargos dirigentes mais ambiciosos e com alguma visão corporativista e estratégica de expansão do seu poder. Neste caso, entre a GNR e a PSP, agravado pelo facto do critério de divisão das competências não ser claro, é visível e expectável que a duplicação de meios nos mesmos locais de controlo fronteiriço – no caso dos portos por questões aduaneiras e de passageiros – potenciará o conflito existente e sobejamente denunciado.

No relatório estratégico CESP 2025 estão descritas situações similares de conflito em modelos partilhados de controlo aduaneiro em França e Espanha. Naquele relatório pode ler-se o seguinte: “Conflitos de jurisdição – A coexistência de órgãos de polícia civil e militar com funções semelhantes é complicada dada a tendência de alguns deles ocuparem a jurisdição do outro órgão. Com estes conflitos, o que se gera é um clima de desconfiança entre os corpos, o que só dificulta a resposta policial exigida pelos cidadãos.

(…)

Em Espanha, a Guardia Civil continua interferindo nas competências atribuídas exclusivamente à Policía Nacional pela lei orgânica das forças e organizações de segurança.

” (…)

  • Aeroportos: em 2019, ocorreram mais de 100 incidentes em diferentes aeroportos nacionais.
  • Portos: em 2019, foram registadas mais de 190 ocorrências nos portos estatais.
  • Imigração irregular: ao longo de 2019, foram verificadas 6 situações de conflito neste período. Cabe destacar que a Policía Nacional dirige a chamada operação MINERVA, enquadrada nas ações da FRONTEX, e os bloqueios da Guardia Civil são constantes durante a passagem de informações.
  • Transporte ferroviário: embora seja a Policía Nacional que posiciona os seus agentes nos comboios que circulam no território nacional através das unidades da brigada policial móvel de transporte, durante o ano de 2019, foram mais de 10 casos de interferência da Guardia Civil por identificações e controlos incorretos nos aludidos meios de transporte.
  • Polícia Judiciária: em 2019, foram descobertos mais de 15 incidentes devido à interferência da Guardia Civil no âmbito e jurisdição da Policía Nacional.

Apesar da existência de órgãos de coordenação de investigações na área da Polícia Judiciária, existem conflitos, visto que, na maioria dos casos de interferência detetados, a Guardia Civil não respeita o que foi acordado após as reuniões da respetiva coordenação. (…)

Em França, a concorrência é utilizada pelo sistema de justiça, que, nos processos penais, faz dupla remessa ou favorece uma em detrimento da outra. A partilha de informações nem sempre é prioritária. Embora teoricamente haja uma distribuição territorial entre a polícia (área urbanizada) e a Gendarmeria (área rural), é comum que a Gendarmeria faça inquéritos e atue em áreas urbanas. (…) Até na comunicação existe competição.”

Em Portugal, todos conhecemos inúmeros exemplos de violação de competências entre OPC´s, mormente no que toca à competência territorial e da Lei de Organização da Investigação Criminal.

Com base nestes exemplos e nas evidências históricas, que a divisão de especialidades é um fator de potencial conflito, temo, portanto, que o desacordo interinstitucional aumente.

Mais uma semente de conflito será semeada e exacerbado o desacordo, em vez de se secundar os esforços de todos os responsáveis dos serviços de polícia e do Ministério Público em busca de uma solução para os conflitos existentes.

Por outro lado, também não se compreende a deriva aviltante e a intenção de “deve garantir que não existe qualquer suspeição sobre quem imigra ou pretende imigrar”. Neste momento existe? Confundem-se temas e posições. É irrefragável que há necessidade de investigar o combate à exploração de quem imigra e este desígnio não pode ser concretizado sem investigação.

A EUROPOL (plano EMPACT) considera prioritário o combate ao tráfico de seres humanos. Esta suspeição não pende claramente sobre quem migra, mas sendo, segundo a EUROPOL, o crime de tráfico de seres humanos um enorme problema na UE e uma prioridade para esta mesma agência e para as polícias dos Estados-membros da UE, a pergunta que se deve fazer é: como se investiga este crime sem fiscalização ou sem investigação? Como se investiga sem suspeitar? Confuso…

Esta mesma agência, através do referido plano EMPACT, estabelece como prioridades a identificação, proteção e assistência das vitimas de tráfico. Será isto suspeição sobre quem imigra ou uma imposição para os OPC que assumirem as competências não suspeitarem?

Esta incongruência ganha novo ímpeto quando percebemos que a EUROPOL atesta que “na última década, as autoridades na UE testemunharam um aumento considerável do tráfico dentro da UE. Em 2014, por exemplo, a maioria das vítimas de tráfico de seres humanos (71%) registadas na base de dados da Europol eram cidadãos da UE. ”

Para aumentar a confusão, na componente criminal, o “Serious and Organized Crime Threat Assessment – 2021″ contraria todos os argumentos que fundamentam a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, declarando o aumento a médio-longo prazo de redes de tráfico de migrantes para a Europa, utilizando as fronteiras externas.

As redes criminosas envolvidas no contrabando de migrantes são caracterizadas pela agilidade e capacidade de resposta às mudanças no seu ambiente. As rotas e modus operandi usados ​​pelos contrabandistas para facilitar os migrantes para e dentro da UE são flexíveis e mudam dependendo das circunstâncias, como condições meteorológicas, disponibilidade de logística de transporte e presença de riscos, como aumento da atividade policial ou restrições de viagem. A pandemia Covid-19 destacou que as crises globais não diminuem a procura de serviços de contrabando para entrar, transitar ou residir na UE. Espera-se que a procura por serviços de contrabando para a Europa aumente a curto e médio a longo prazo”.

Mas, afinal, é apenas o relatório da Europol… um mar de insensatez portanto. Adiante…

Principalmente na proteção dos migrantes, o controlo de fronteiras por uma polícia especializada é fundamental. Sabemos que apesar dos migrantes irregulares serem clientes dos traficantes e pagarem pelos seus serviços, os migrantes são frequentemente vitimizados. Os traficantes tratam os migrantes como mercadoria, muitas vezes dando prioridade ao objetivo de maximizar os lucros, aumentando os riscos físicos e psicológicos sobre os migrantes explorados. Quem protege estas pessoas?

Será que se considera neste preâmbulo legislativo o facto de as três rotas de entrada do Mediterrâneo (Ocidental, Central e Oriental) ainda serem predominantemente usadas por redes de contrabando para introduzir migrantes irregulares na UE?

Que na rota do Mediterrâneo Ocidental, a Argélia emergiu recentemente como um ponto de partida importante e as Ilhas Canárias têm sido cada vez mais visadas ao longo da rota da África Ocidental com Portugal a ser um país que se situa na rota marítima entre este arquipélago e Espanha?

É claro que esta alteração legislativa está claramente relacionada, mais que não seja por ter aproveitado o momento de fragilidade institucional do SEF, com o caso hediondo do cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa e a que a investigação criminal e a Justiça portuguesa já responderam. Perante um caso, que não pode voltar a repetir-se, e a cacofonia criada sobre o tipo de serviço, decidiu-se não corrigir. Decide-se extinguir e limpar o passado, sem reforçar meios, afinar procedimentos, aumentar o controlo, exigir competência, rigor e zelo, e, sobretudo, sindicar um serviço de modo a que este sirva as pessoas e as proteja.

Basta convencer a opinião pública de que o SEF acabou. Eloquentemente, muda-se o nome, repartem-se as competências e deixamos de ter um problema. Adiamos. A quintessência da segurança interna. Adiar.

A sede de poder e a concentração de competências dará mais um passo no seu percurso.

Cuide-se a Polícia Judiciária – o eterno arqui-inimigo dos defensores da Polícia Nacional – e para aumentar a confusão, porque não a Marinha e os Bombeiros, já que a ubiquidade da GNR já permite que a mesma possua valências de mar e de deteção e combate a incêndios.

Legislar deste modo, promovendo a extinção de um serviço especializado é uma precipitação e um erro que pode comprometer a segurança do território português e consequentemente o perímetro de segurança europeu.

Concentrar poderes debaixo de um ministério ou de um diretor é um monumento à miopia e um atestado sobre a falta de visão democrática que tende a aumentar com o decorrer da história. O aumento de poder policial concentrado é uma amputação grave à separação de poderes e à evolução de um regime democrático em que a liberdade é o principal primado a defender.

A opção de apostar na formação inicial e contínua e na seleção criteriosa e rigorosa dos elementos do SEF, assim como na criação de uma escola de base para este serviço de segurança serviria melhor Portugal, país com um modelo policial de sucesso e que apresenta excecionais resultados de segurança e nas classificações internacionais de perceção de segurança.

Outorguem as condições necessárias aos Homens e às instituições e deixemo-nos de visões sofistas e, principalmente, de confusões.