Para poder acontecer, a enfermagem precisa de condições. Por vezes assistimos a debates sobre as funções sociais das profissões. O mais frequente é falar-se dos profissionais e das suas condições laborais. Fazendo-se a partir daí extrapolações sobre o valor social e finalidade de cada profissão. Pois bem, isto denota não só incapacidade das profissões para se explicarem e concetualizarem no seio da sociedade, mas também um fraco nível de debate político, que ao invés de imprimir uma visão de futuro limita-se a gerir tensões presentes e a organizar grupos de interesse em função do “mercado eleitoral”.
A enfermagem não tem sido exceção. Mas a profissão existe em função da sua necessidade social. Aliás, já existia muito antes da organização jurídico-política das sociedades contemporâneas. O cuidado aos que nasciam e suas mães, o conforto e alívio aos que padeciam de maleitas ou a educação para uma vida saudável são práticas ancestrais plasmadas nas histórias e tradições das mais diversas comunidades humanas, ainda que não adstritas a um grupo profissional distinto e organizado como tal (pois tal organização social também não existia à época). À medida que os tempos foram evoluindo e as formas de organização e participação social acompanharam essa mudança, novos referenciais de ordem social foram aparecendo.
Hoje, é inegável a primazia do modelo capitalista nos países com os quais comparamos, assim como das democracias liberais enquanto forma de organização da participação social e da ordem política. Também é inegável a força motriz da tecnologia e do digital, assim como do individualismo e do culto da personalidade. Impõe-se, portanto, perguntar: o que representa a enfermagem neste contexto? Qual o seu papel social?
Propomos 4 vias para materializar as condições que a enfermagem necessita para cumprir o seu mandato social:
1.Dotações seguras: para que os cuidados de enfermagem possam ocorrer os enfermeiros têm de ter condições para os concretizar. Ter condições passa por existirem enfermeiros em número suficiente em cada local para que qualquer cidadão possa receber os cuidados de enfermagem na quantidade que necessita e com a qualidade que a ética impõe. Tal tem custos, é certo, que precisam ser contrapostos com os custos da inexistência dos cuidados e respetivas implicações éticas (e até legais) associadas à negação desses cuidados a quem deles necessita.
2.Saber e corpo profissional: é necessário que as práticas profissionais se traduzam numa cultura própria que modele a forma como os enfermeiros se veem a si mesmos e como são vistos pelos outros. Profissões como a enfermagem, pelas exigências que impõem aos seus membros e pela responsabilidade social que incorporam, devem ser vistas como profissões para a vida e não como um trabalho no qual se entra e se sai sem o desenvolvimento de qualquer traço identitário.
3.Referenciais: qualquer ordem social é incorporada mais facilmente pelo exemplo e pela vontade de se seguir determinados modelos, representantes das virtudes morais, éticas e/ou profissionais, do que através da imposição de regras e verificação do seu cumprimento mediante o recurso a penalizações. Ora, tal implica a existência destes referenciais, que não se formam nem consolidam em dias, meses ou anos. Demoram décadas. Assim como demora a aparecer o fruto do seu trabalho. Que depois precisa ser apreciado e validado pelos pares. Que então decidirão seguir o exemplo.
4.Ecossistema: a enfermagem existe no contexto de um complexo ecossistema social. Daqui resulta a necessidade de práticas e conhecimentos interprofissionais e colaborativos. Desde a sua génese até à sua efetivação. Esta realidade impõe a necessidade de conseguirmos desenvolver uma prática de natureza sistémica e multiprofissional, sem anular ou relegar para segundo plano aquilo que é a resposta social que a enfermagem tem de dar e para a qual os seus membros estão preparados e na qual evoluem e melhoram.
Estas são algumas questões sobre as quais nos podíamos debruçar. Quem está disposto a fazê-lo?