O estudo da História, pelo menos o interesse pelo tema, é relevante no processo de formação intelectual, conferindo desde logo conhecimento factual – que permite entender um pouco melhor de onde vimos e como se chegou onde se chegou – mas também oportunidades para pensar criticamente e, sobretudo, analisar o presente e pensar o futuro em relação a algo, neste caso a eventos passados.
O filósofo e político irlandês Edmud Bruke afirmou que “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. No caso nacional, assistimos serenos a exemplos desta máxima demasiadas vezes – serenos em média, ressalvo, pois há, sobretudo nas redes sociais, os que se escandalizam e que contrabalançam com os “avençados” de serviço que tudo aceitam e justificam, e fora das redes os dias desfiam uns depois dos outros, sendo o efeito global médio da indignação praticamente nulo.
Quando observamos eventos passados é frequente encontramos momentos “óbvios” (faço o paralelismo com os momentos “clutch” no desporto em que, geralmente nos últimos minutos de um jogo, se reúne a força e a concentração necessárias para se ter sucesso e eventualmente mudar o resultado do jogo), onde parece fácil perceber como tudo vai redundar menos para os intervenientes desses eventos que não tomam as atitudes corretas e deixam que a entropia (o grau de desordem) aumente, no fundo que os referidos eventos sigam o seu ritmo rumo ao desastre. Face a estas situações não é invulgar arrogarmo-nos um certo grau de superioridade, fantasiando que nós ou um qualquer contemporâneo, submetido às mesmas situações, tomaria atitudes muito mais sérias e responsáveis, inteligentes até.
Retive, recentemente, alguns bons exemplos no magnifico livro A Tragédia de um Povo, de Orlando Figes, de onde peço emprestado o título para este texto, no qual parece simples e fácil, a posteriori, perceber o verdadeiro desastre político e social em curso na Rússia em finais do século XIX e inícios do século XX, que vai resultar na criação da URSS, e apresentar diversos pontos de inflexão, com atitudes a serem tomadas. Num desses exemplos, e já em pleno período da Revolução Russa, o embaixador britânico no império russo relata o curioso caso de um deputado menchevique do soviete de Moscovo, que em 1917, num encontro de regimentos, discursou mecânica e inflamadamente para uma multidão sobre a necessidade de paz, de toda a terra ser entregue aos camponeses e das vantagens de uma república sobre a monarquia. Os soldados receberam o discurso com saudações calorosas e um deles terá gritado, “Queremos eleger-te como Czar”, ao que os restantes aplaudiram. Sintetizou o deputado: “Recusei a coroa Romanov e fui-me embora com a sensação pesada de como seria fácil a qualquer aventureiro ou demagogo tornar-se o mestre desta gente simples e crédula.”
Esta passagem relacionada com a Revolução Russa de 1917 poderia ser, mais de um século depois, perfeitamente aplicada a Portugal. Um povo simples e crédulo, damos a mão a quem se afigure afável e nos faça belas promessas – um médico de família para cada um de nós ou ainda habitação condigna para todos até 2024, para citar dois exemplos. Muitos outros poderiam ser dados, englobando diversos aspetos económicos e sociais. Não que as promessas não sejam boas, longe disso. Quem não ficaria genuinamente contente em viver num país onde todos tivessem um médico de família? Ou existisse habitação digna para todos? O que vamos assistindo, contudo, é que à semelhança de uma revolução que prometeu tirar o poder de uns quantos para o partilhar entre todos, os anos passam e tudo permanece igual. Ou piora, inclusivamente – tanto no caso russo de 1917 em diante, como a história se encarregou de mostrar, como no caso português, com os médicos de família, por exemplo, onde o nível de prestação de serviços tem piorado nos últimos anos, sem que daí advenham consequências de maior para os gestores e decisores. E refiro-me, claro está, ao ponto de vista da maioria. Tal como a revolução russa, que em teoria beneficiaria milhões de trabalhadores oprimidos, mas que redundou na criação de uma sociedade que visava a manutenção do status quo de uns milhares de intelectuais através de um sistema que os perpetuava no poder ou na sua sombra, assistimos, impávidos, a algo semelhante no caso nacional, ou seja, na colocação a troco de vãs promessas de um país a soldo de uns quantos, filiados ou próximos dos partidos do arco da governação, pois claro.
Aos numerosos erros de governo e gestão dos desígnios da nação seguem-se (por enquanto) fugazes e fracas justificações, e, por inerência, quem as diligentemente propague. A accountability ou prestação de contas no sentido da aceitação da responsabilidade pelas ações tomadas, é que é cada vez menor. A pedra angular da democracia moderna, a “responsabilidade política”, vive dias complicados. Só nos últimos anos, entre mega-incêndios com um número de vítimas a ultrapassar a centena, armas desaparecidas (e, entretanto, reaparecidas), o caso do procurador e do seu CV à lá carte, o infeliz ucraniano Ihor, e, mais recentemente, – ainda que fora do Governo, mas (quase sempre) na sua esfera política – o caso da delação (até ver sem prémio) da CM de Lisboa, ocorreram um robusto rol de disparates, ao qual se seguiu um óbvio e infeliz deserto de consequências políticas. Se errar é humano, persistir no erro sem dele tirar qualquer ilação ou consequência é, para nosso mal nos tempos que correm, um desígnio de quem nos governa ou preside.
Acredito que no futuro estes nossos tempos serão analisados sob a mesma lupa do “seria tão simples ter mudado”. Temos muito menos desculpas do quem nos antecedeu, dado o acesso a informação sem precedentes na história, saibamos procurar, filtrar e agir criticamente sobre os resultados. É a tragédia de um povo que se vai repetindo, amarrado a uma triste sina de periferia e indigência por meia dúzia de promessas ocas e vãs que se vão renovando. E o derradeiro golpe, que não andará muito longe, será quando perceberem que para nos manterem com o cabresto nem precisam de prometer nada.