1 A blindagem ideológica
Mesmo que se multipliquem as pequenas inaugurações pré-eleitorais surgem evidências fortes de que se agravam os bloqueios que não permitem o relançamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) pelo que importa diagnosticar os principais tipos de blindagem que os ocasionam.
Ora, o primeiro tipo de blindagem é de natureza ideológica e traduz-se pela cultura maniqueísta de considerar que os serviços públicos de Saúde são um bem enquanto que os privados são um mal pois a “Saúde não deve ser um negócio”. Esta cultura não estava presente na proposta de Lei de Bases proposta por Maria de Belém Roseira mas foi alterada e aquela que foi aprovada e promulgada pelo Presidente de República claramente assume esta tentativa de minimização do sistema privado pois esclarece que só em condições excecionais e de recurso é que se deve recorrer a ele. Aliás, esta orientação foi bem patente no combate ao COVID19 pois atrasou-se até ao limite o recurso aos hospitais privados o que se traduziu por agravamento da saúde de doentes e por significativo aumento de fatalidades.
Confirmação recente foi a dinâmica de extinção dos contratos de Parceria Pública-Privada para a gestão hospitalar muito embora os relatórios independentes e insuspeitos do Tribunal de Contas confirmassem as suas vantagens comparativas em qualidade e economia.
2 A blindagem profissional
Semanalmente somos informados que a carência de profissionais se agudiza incluindo equipas que se sentem esgotadas e outras que estão dizimadas, hospitais que fecham serviços e outros que só se baseiam em tarefeiros fornecidos por atacado por empresas privadas, ou seja, radicadas no pecado do “negócio”.
Os concursos abertos não conseguem atrair candidatos tal como tem acontecido, por exemplo no caso dos médicos de família, continuando mais de um milhão de portugueses a não ter médico de família.
Todavia, ao que parece, as políticas públicas adotadas consistem em permitir aumentar o número de horas extraordinárias que já ultrapassam médias de mais de 25 ou 30 horas semanais e, também por consequência, blindar mais o relacionamento dos profissionais do SNS com os seus pares, públicos ou privados e com as comunidades científicas e profissionais em que se devem integrar.
Ora, o problema da harmonização das carreiras profissionais especializadas entre público e privado já foi muito estudado e a solução não é blindar mas sim criar no público condições atraentes aos profissionais promovendo a disponibilidade para a formação, não só especializada mas também inter-disciplinar, para a investigação e a cooperação internacional, incentivar a diversificação funcional e adotar a remuneração em função do desempenho, essencial à Value Based Health, ou seja, o oposto de basear a solução no aumento das horas extraordinárias e dos tarefeiros anónimos.
3 A blindagem do acesso
A blindagem do acesso tem três dimensões distintas que importa caracterizar. A primeira respeita às permanentes dificuldades de acesso do cidadão à rede de saúde primária parecendo que estamos numa era anterior à invenção do telefone por Bell.
Assim, por exemplo, se pretender fazer qualquer contacto (dúvida, consulta, etc.) no meu centro de saúde (USF das Descobertas, em Lisboa), o site do SNS diz-me não ser possível, a linha SNS 24 dá me a mesma resposta , não se consegue telefonar para o centro e se enviar mail terá efeito semelhante ao do seu envio para o planeta Vénus.
O segundo tipo de blindagem concerne os crescentes atrasos quanto à prestação de cuidados, sejam consultas, exames ou cirurgias também bem conhecidos e agora agravados pelos atrasos devidos ao COVID19.
O terceiro tipo de blindagem respeita a incipiente adoção dos meios digitais para fazer saúde domiciliária potenciando a portabilidade das chamadas “ wearable technologies”, abrindo o SNS às redes domiciliárias e conseguindo tratar idosos e doentes crónicos sem os hospitalizar.
4 Conclusão
Em suma, as políticas atuais conduzem o SNS a ser uma ilha estatal no contexto da economia de mercado que caracteriza a UE a que pertencemos o que suscita insuficiências e contradições progressivas pois tal modelo acaba por exigir maior recurso ao setor privado no que respeita aos recursos adquiridos e faz crescer o recurso aos operadores privados pelos cidadãos devido ao insuficiente serviço prestado pelo SNS. Eis porque, segundo o recente anuário da OCDE, Health at a glance, 2021, somos o país da EU em que a percentagem do consumo das famílias em saúde (out of the pocket ) é maior (quase 5% maior) e a contratação de seguros privados é superior à média, sendo realmente surpreendente como num país com salário médio tão baixo e próximo dos 1000 euros já quase 1/3 das famílias conseguem pagar seguro privado de saúde!
Ou seja, quem quiser relançar o SNS reconciliando-o com as próprias populações e as estruturas profissionais, sociais e económicas de Portugal, no quadro da economia de mercado a que pertencemos, terá de começar por combater as três blindagens referidas.