Há dias, a emissão da CNN original foi interrompida por uma notícia de última hora: “Bruce Springsteen declara apoio a Kamala Harris”. “Breaking News”, de facto. Há pelo menos quarenta anos que Springsteen apoia candidatos democratas, e deve ter sido um dos dezassete ou dezoito americanos que, em 1984, não votaram em Reagan. Não vale a pena notar que as suas melhores canções, anteriores a 1983 e habitadas pelos operários brancos que hoje votam principalmente em Donald Trump, serem agora cantadas para uma audiência capaz de pagar dois mil dólares por um bilhete (por exemplo na série de concertos na Broadway, em 2017). Com ou sem declaração, era óbvio – e não notícia – que Springsteen apoiaria a dona Kamala. Ainda que não fosse óbvio, isso seria notícia porquê?

Ora essa: porque na América e não só na América se convencionou que as “celebridades” têm uma palavra “especial” a dizer sobre a actualidade e, em particular, sobre eleições. Por algum motivo que escapa ao bom senso, há a crença de que a circunstância de alguém conseguir decorar uns diálogos, entoar umas cantilenas ou participar num “reality show” lhe confere uma autoridade superior à dos mortais na discussão do clima, do sistema de saúde ou dos inquilinos ideais da Casa Branca. Fechadas na redoma do dinheiro fácil e da adulação facílima, inúmeras “celebridades” convencem-se de que vêem até onde o olhar turvo dos anónimos não alcança. Eles, e elas, sentem-se ungidos.

Ricky Gervais, uma rara “celebridade” com os pés no chão e a cabeça no lugar, resumiu o distúrbio na última vez em que o chamaram para apresentar os Globos de Ouro ou similar entrega de quinquilharias: “Peço a quem ganhar um prémio esta noite que não o aproveite para fazer discursos políticos. Vocês não têm capacidade de ensinar nada ao público. A maioria passou menos tempo na escola que Greta Thumberg. Então, se ganharem, aceitem lá o premiozinho, agradeçam ao vosso agente e ao vosso Deus e ponham-se a andar, está bem?” Na ocasião, viu-se na plateia o espanto ou a repulsa de criaturas habituadas ao privilégio, e desabituadas a que lhes falem assim.

Mas não é apenas uma perturbação egocêntrica que leva as “celebridades” a divagar acerca do que largamente as ultrapassa. O interesse material também pesa. É por isso que, além de nos abençoarem com as respectivas opiniões, em geral as opiniões tendem a ser idênticas. Quase todas as “celebridades” repetem as mesmas ofensivas trivialidades a propósito, ou a despropósito, dos mesmos temas. A dissidência, que poucos arriscam, é sumariamente punida com a excomunhão, leia-se uma carreira arruinada ou lançada às margens. O “Macarthismo” do século XXI dispensa formalidades. Aconteceu na Covid, acontece nas questões “identitárias” e raciais, tem acontecido nas sucessivas “presidenciais”, em que do lado republicano concorre inevitavelmente o pior ser humano desde Vlad, o Empalador, e do lado democrata um portento qualquer. Em 2024, como em 2020 e em 2016, o pior ser humano desde Vlad, o Empalador é Trump, o Pantomineiro. E o portento é a dona Kamala, que de finais de Julho para cá angariou a veneração súbita e explícita de 99,97% das figuras do espectáculo, receosas de que a sua virtude não ficasse devidamente assinalada.

Em nome do rigor, informo que a “celebridade” alegadamente decisiva nas eleições do mês que vem não é Springsteen nem nenhum vulto de Hollywood, e sim Taylor Swift, cançonetista que possui quatrocentos triliões de devotos nas “redes sociais”. Por sorte, e alguma habilidade, nunca a ouvi cantar. Parece-me, e é mera impressão, que o devoto médio da moça ronda, física ou mentalmente, os sete anos, pormenor que não impede o frenesim em volta do apoio da menina Swift à dona Kamala. Exacto: após “pesquisar” (sic) imenso , talvez no TikTok, a popular artista resolveu doar o seu cobiçado voto à “guerreira” (sic outra vez) que substituiu o pobre Joe Biden. As empresas de sondagens, atentas, andam a medir com afinco o peso de semelhante opção nos resultados de Novembro. Será que a menina Swift pode escolher o próximo presidente dos EUA?

À primeira vista, a hipótese assusta. À segunda, nem tanto. Por muito que muitos estudem o assunto, a verdade é que as conclusões são contraditórias ou nulas. Para não recuar até Sinatra ou Streisand, o caso “clássico” contemporâneo é o de Oprah Winfrey, cuja recomendação teoricamente ajudou à vitória de Obama em 2008. Porém, na prática não ajudou Hillary em 2016. O mais provável é que o apoio das “celebridades” favoreça o candidato que a maioria dos eleitores obscuros já pretendia eleger – ou seja, que não sirva para nada, excepto para as “celebridades” recordarem às massas que existem, afagarem o próprio ego e exibirem um bom e terno coração. Perversões à parte, convém puxarmos do optimismo e acreditar que o cidadão anónimo despreza os esforços de “celebridades” tontinhas e acaba por votar em liberdade e consciência no tontinho que entender. Ou na tontinha.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR