Uma menina de nove anos desapareceu de Atouguia da Baleia em Maio do ano passado. Ouvimos ou lemos os cabeçalhos dos jornais e rodapés das televisões no intervalo da pandemia, como uma vírgula que lamentamos mas que rapidamente ultrapassamos. Estávamos submersos pelo número dos mortos, pelas medidas do Estado para mitigar o impacto económico e pelos absurdos de Trump, sem imaginarmos que o pior ainda estava para chegar. Nos nossos cérebros ocupados, mas ágeis em desconstruir a avalanche de informação que chega em cada maré, dispusemos as hipóteses como peças de um puzzle de dificuldade média: mais uma menor que foi raptada, que fugiu de casa mas aparece dentro de dias, ou ainda aquela suspeita que não verbalizamos por temor que as palavras se antecipem aos actos.

Uma menina foi encontrada sem vida num eucaliptal, a cerca de cinco quilómetros de casa. Uma filha de quem não conhecemos, mas supomos que seja amada, porque é uma filha. Não é assim até nos animais? Uma dor que é dos pais e que comungamos por afeição, por osmose,  tentamos diminutamente colocarmo-nos naquele lugar. Mas afinal não.

Uma menina foi assassinada ao que tudo indica pelo próprio pai,  instigado pela sua companheira. Mataram a Valentina e nós deixámos: eu, você, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, o Estado, os vizinhos, os professores, os de longe e os de perto. Todos. A Valentina foi asfixiada numa banheira, com sinais de violência prolongada e deixada no meio do nada. A descrição é escabrosa e causa-nos náusea, mas é a única maneira de estarmos todos lá, como nunca estivemos.

Não a conhecemos, não vimos o seu sorriso nem vivemos a sua traquinice doce. Agora é tarde. A Valentina é mais uma criança que podia ter sido feliz. Provavelmente mais uma que esteve à mercê das vontades dos adultos sem ninguém que lhe puxasse a mão, num pingue-pongue pragmático entre casas, entre vidas e baralhos. Não há acidente que justifique a malignidade deste crime. Não há argumentos que diminuam a sua crueldade, a sua bestialidade. Simplesmente porque não há razão. Se nos apegarmos a provas e indícios que possam minimizar a culpa, estamos a diminuir-nos como pessoas. Não nos podemos permitir.

Uma criança não é um estorvo, não é o restolho que se larga depois da colheita, não é descartável, não é o resto. A Valentina foi uma vítima de todos os fracos e a sua morte é uma debilidade da qual nos devemos envergonhar como sociedade.

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