Portugal é um Estado laico, há separação entre as igrejas e o Estado.

A liberdade de consciência, religião e de culto está consagrada constitucionalmente. O que também inclui, naturalmente, a liberdade de ser agnóstico ou ateu.

A Constituição também diz que “Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa”. Direito à proteção do livre arbítrio e da fé.

Assim sendo, faz sentido falar da vida espiritual dos políticos? Ou seja, questionar se a têm e qual o impacto que isso tem no seu pensamento e na sua ação? Não têm eles direito a não ser perguntados sobre isso?

Mas o que é “vida do espírito”? A “vida interior”?

“Vida”, “Espírito”, “Liberdade”, “Consciência”, “Vontade”, “Poder”, são conceitos tão densos e controvertidos que não se compadecem desta escrita em estilo de crónica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por isso, limito-me a seguir nas pegadas de um texto tardio e muito debatido de Hannah Arendt. Sendo uma das mais influentes pensadoras do século XX, os seus escritos sobre a articulação da vida do espírito e o poder, sobre totalitarismo e liberdade, são incontornáveis. Nomeadamente, a sua última e inacabada obra, com textos de 1973 e 1974 – “A vida do espírito”. Foram publicados dois volumes póstumos, a partir de manuscritos. O primeiro – “Pensar” – e o segundo – “Querer”. O terceiro – “Ajuizar” – ficou por escrever  (Hannah Arendt faleceu a 4 de dezembro de 1975). Destaco um aspeto, em particular, desta sua obra: no princípio do livro segundo, Arendt enfatiza o Hegel da Jensener Logik, da Fenomenologia do Espírito. Chama a atenção para o facto de Hegel, apesar de teorizar a filosofia da História, afirmar que o espírito dos homens (a vida interior?) se coloca mais no Futuro que no Passado.  Regressa ao tema em cursos que ainda deu (na New School of Social Research, em Nova Iorque) em 1974. Numa nota manuscrita (depositada na Library of Congress, em Washington DC) de um seminário dado a 24 de Fevereiro de 1975 (estava Portugal a organizar-se entre as tendências totalitárias e a liberdade), na sequência das Gifford Lectures que tinha dado nos dois anos anteriores, ela cita, outra vez, Hegel: “O Presente (Agora) não pode resistir ao Futuro. O Agora está vazio – ele preenche-se no Futuro” (Jensener Logik, 1804-05).

Esta eclosão do Futuro no Presente, confronta-se, Agora, com a tendência de olhar para a liberdade como abismo (o abismo do perigo, nunca o da atração) e para a totalitarismo como porto de abrigo (o poder total, sobre a vida de cada um e da comunidade), promovendo a ideia de que o Espírito, a Vontade, se devem organizar na segurança totalitária e contrariar os perigos do livre arbítrio.

A tendência de cancelamento da liberdade tanto se encontra no que se poderia chamar Wokismo da Extrema Esquerda, como no da  Extrema Direita (pois as duas tendências se arrogam, igualmente, superioridade moral e direito de totalitarizar o pensamento e a ação). Pode parecer estranho usar a palavra estrangeirada Wokismo (do Inglês, woke) associada à crítica da Extrema Direita, quando, precisamente, esta a usa, para criticar a Extrema Esquerda.

Sendo uma palavra que foi utilizada para cunhar as dinâmicas do acordar (em Inglês, awake) da consciência da comunidade afro-americana, no século XIX, no quadro da luta contra a escrevatura, a sua evolução semântica deu-lhe múltiplos e por vezes antagónicos significados.

O estar acordado, estar alerta, estar vigilante (stay woke), passou, já neste século, a ser usado de uma forma mais genérica em situações de ativismo (e que, obviamente, significa estar alerta na defesa de um conjunto de valores) e, atualmente, associa-se, também, aos movimentos de Extrema Esquerda que se arrogam o direito de impor as suas regras a toda a comunidade. Este último significado da palavra, está conforme a classificação que movimentos conservadores dão a várias formas de valores que pretendem a supremacia social, a partir do cancelamento cultural e de movimentos de género. Como posso usar a mesma palavra para criticar a Extrema Esquerda e a Extrema Direita? Da mesma maneira que a palavra Populismo começou a associar-se a discursividades da Extrema Direita  e pode hoje, de facto, ser associada a qualquer forma de exercício populista, independentemente da posição do ator político de referência, no espetro discursivo.

A vida do espírito, a vida interior dos políticos, projeta-se, como enfatiza Arendt na citação de Hegel, para o Futuro? E esse Futuro, tornado Presente, é uma guerra cultural entre totalitarismos de Direita e de Esquerda? Uma vontade de promover a vida interior das sociedades a uma simplificação valorativa imposta e policiada? Por vezes, por muitos, desejada?

Qual a riqueza, a densidade, da vida interior? Até que ponto se exerce em profundidade e torna o político alguém mais preparado para governar? Como a tentação totalitária pode ser travada? Ou será que para cada Marine Le Pen há um Jean-Luc Mélenchon? Para cada André Ventura uma Mariana Mortágua?

Ao longo dos séculos, políticos extraordinários, iluminaram as sociedades, a partir de uma construção de uma vida do espírito, de uma vida interior. Políticos gregos como Sólon (século VII aC) muçulmanos, como Saladino (século XII), hindus como Ghandi (século XX). Políticos católicos como D. Nuno Álvares Pereira (século XIV) ou pais fundadores da União Europeia, também inspirados no Catolicismo, como Robert Schuman, Konrad Adenauer ou Alcide de Gasperi (curiosamente, agora, há quem, na Extrema Direita, se diga católico e queira destruir a União Europeia, quando estes católicos que referi a começaram a construir contra o nazismo e o fascismo). No  Portugal pós-25 de Abril de 1974, apesar dos diferentes quadrantes políticos, não se pode negar a riqueza espiritual de líderes como Mário Soares, Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa ou Álvaro Cunhal. E no feminino, Maria de Lourdes Pintasilgo, Natália Correia, Sophia de Mello Breyner Andresen, Manuela Silva. Podemos concordar, discordar, admirar, detestar, estas personagens. Mas, não  podemos ignorar a riqueza dos seus espíritos, da sua vida interior.

E Agora? Será que os políticos atuais não a têm? Serão todos superficiais? O Futuro, no Agora, reduzir-se-à à ambição da conquista e manutenção do Poder?

Provavelmente, não.

Todavia, não poderá negar-se que o modelo do sistema eleitoral português – com os diretórios partidários a escolher os candidatos e estes serem, maioritariamente, figuras que fizeram a vida dentro dos partidos – e a erosão do sentido de profundidade provocado pela vertigem da comunicação contemporânea, diminuiram tanto o conjunto de “políticos substantivos” como as mensagens com substância. É um movimento de dupla hélice, que, intricadamente, nos afasta da complexidade, a nível individual e coletivo. Estamos todos a tornarmo-nos adjetivos e não substantivos.

E quando as dinâmicas do mercado capitalista se afunilam no apelo ao consumo massificado, vendendo as maiores banalidades envolvidas em mensagens, aparentemente, sofisticadas e modernas, quando as vozes de maior densidade se tornam uma maçada (salvo raras excepções), face à superficialidade discursiva que seduz a população, sabemos que é mais o pão e o circo que sustentam as colunas do templo, para lá de qualquer arquitetura de maior fôlego. Arquitetura que traga um Futuro ao Espírito, Agora. Um Agora de uma vivacidade esplenderosa, como a Glória do Espírito Santo. Não a dos falsos profetas, não a dos satanazes que nos infernizam o quotidiano, mas a sublime glória do sentido amoroso, da liberdade, da responsabilidade, como elementos fazedores do eu e do nós.

Podemos perguntar pela vida espiritual dos políticos? O quanto estão acordados, não para o radicalismo mas para servir? Podemos. Não queremos saber dos seus estados de alma, mas queremos saber se cuidam da alma. Perceber se fazem leituras para lá de títulos de livros admiráveis decorados para debitar em entrevistas, perceber se há silêncio reflexivo, se há distância suficiente do jogo político que permita vê-lo, perceber se as luzes da ribalta não cegaram.

Todos temos vida espiritual, vida  interior, o que não significa que todos cuidemos da mesma, o que não significa que quem cavalga os animais ferozes do Poder, consiga (ou queira) ter momentos de paz suspensos sobre o turbilhão voraz dos dias e das noites, silêncios onde florescem perguntas, onde se guarda a humildade, onde se reitera a razão do Poder – servir a comunidade. Que seja esse o Futuro do Agora.