O défice orçamental afinal é de 0,92% ou de 2,96%? Pensar que um número ou outro fazem diferença é confundir contabilidade com realidade. E a realidade é simples: o Estado teve de gastar o dinheiro que corresponde à diferença entre os dois números na recapitalização da Caixa Geral de Depósitos. Qualquer que seja a contabilidade do défice, a verdade é que a dívida pública é a mesma.
Já a surpresa do ministro é difícil de levar a sério. Afinal, o dinheiro que o Estado tem empatado no sistema bancário nos últimos anos tem sido sempre reflectido na contabilidade do défice. Não há grande motivo para achar que deva ser diferente. Ou seja, o défice de 2017 é 2,96% do PIB. Mas, se me perguntarem qual dos dois números é para mim mais relevante, a resposta é imediata: 0,92%. De um ponto de vista estrutural, e acreditando que não será necessário enfiar muito mais dinheiro nos bancos, o que conta é este número. Neste momento, o esforço extra a fazer para chegarmos ao desejado zero é de 0,92% do PIB e não 2,96%.
No entanto, esta rábula do défice tem uma utilidade importante que é a de ajudar a entender a importância de não se esticar os limites. Se, como muitas pessoas advogam, o governo fosse menos ambicioso, esta “surpresa” da Caixa faria com que o défice ficasse acima dos 3%. Quase de certeza que tal não levaria a que reabrissem o Procedimento por Défices Excessivos, mas um défice acima do limite dos 3% faria levantar sobrolhos e não deixaria de fragilizar o líder do Eurogrupo.
Ainda bem que foi previdente. É aliás uma extraordinária coincidência que tenha ido além da meta prevista no exacto montante que nos permitiu ficar muito ligeiramente abaixo dos 3%, depois de adicionado o efeito Caixa. Como se vê, a sorte protege os audazes. E, neste caso, a audácia foi com a conta, peso e medida certa. O BE e o PCP costumam queixar-se que o governo tem défices mais baixos do que precisa. Desta vez, não se deviam queixar.
Outra coisa que talvez esteja na altura de se perceber é que em Economia, especialmente no que toca a Finanças Públicas, não há milagres. E, se a tese da austeridade expansionista de há uns anos estava completamente errada, também a ideia de que é possível repor salários, baixar impostos e reduzir o défice sem cortar outras verbas importantes é igualmente disparatada. A não ser, claro, que tivéssemos um crescimento tão robusto que as receitas fiscais subissem muito só por esse efeito. Infelizmente, os 2,7% de crescimento (0,2 pontos percentuais acima da média europeia) são insuficientes para tamanhas façanhas.
Sempre pensei que a aversão de muitos à Matemática se materializa no horror à Economia. A Economia impõe balizas e limites às políticas e à discussão pública, tal como a Matemática impõe regras ao raciocínio. Quem não gosta de Lógica não pode gostar de Matemática, tal como quem prefere o pensamento mágico à análise objectiva dos factos não pode gostar de Economia.
Os números de 2017 ajudam a dissipar quaisquer dúvidas sobre esta alquimia das Finanças Públicas que permitiu acabar com a austeridade e reduzir o défice para níveis nunca antes vistos. As pensões, os salários e as carreiras dos funcionários públicos foram (parcialmente) repostos à custa da maior carga fiscal de sempre e de níveis de investimento público baixíssimos. Tal como o Cristiano Ronaldo do futebol não viola as leis da Física, também o Cristiano Ronaldo das Finanças não viola as leis da Economia.
É perfeitamente legítimo o argumento de que a receita fiscal aumentou porque houve crescimento. O crescimento económico gera receitas fiscais sem que tal envolva aumento de taxas. Mas para a carga fiscal aumentar, tal quer dizer que as receitas fiscais aumentaram ainda mais do que o rendimento. É como se a taxa média de imposto tivesse aumentado.
(NB: de forma assumidamente grosseira, neste artigo não faço distinção nem entre contribuições para a Segurança Social e impostos nem entre impostos directos e indirectos.)
Mas, para se atingir o valor de 0,92%, a carga fiscal recorde não foi suficiente. Foi também necessário cortar no investimento. Em 2017, tal como em 2016, o investimento público ficou muito aquém do prometido. Neste momento o investimento público é tão baixo que, provavelmente, nem para a manutenção das actuais infra-estruturas chega. As notícias recentes sobre o muito mau estado das linhas férreas são um indicador muito forte nesse sentido.
Nada disto diminui o mérito de Mário Centeno, que, como excelente economista, fez o melhor que podia fazer, dadas as restrições que a actual solução governativa lhe impôs. Para o futuro, será importante aumentar o investimento público. Isso quererá dizer que os próximos acréscimos de receita fiscal deverão ser aproveitados para aumentar o investimento e não os funcionários públicos. Mas isso é uma questão para António Costa resolver.