Abril permite-me discordar e manifestar, sem insultos e sem soberba, a discordância. E permite-me lamentar o que considero ser uma oportunidade perdida. Uma oportunidade de assumir a responsabilidade de cumprir o que se exige a todos. E no exercício dessa liberdade afirmo que comemorar abril no modelo tradicional contribui para reforçar o muro do alheamento entre crianças e jovens e abril. Por isso considero, independentemente da maioria de deliberação, que interrompe abril.

Esta crise, como aliás a anterior, pode ter o mérito de fazer emergir um Portugal mais poderoso e mais ambicioso em matéria dos valores e dos princípios que defendemos e, consequentemente, das prioridades que estabelecemos, das políticas públicas que adotamos e das medidas que não adiamos.

Mas Portugal somos nós! Nós todos de quem a liberdade emana, de quem a soberania se projeta, a quem o país pertence!

O Portugal de hoje, o Portugal de amanhã e o Portugal de ontem somos nós! É nosso, o património político de Portugal. De cada momento e de cada sopro de Portugal! É nosso! E, repito, é de todos sem exceção. É das crianças e dos jovens que vivem hoje o sobressalto imenso da mudança radical nas suas vidas, ainda que temporária, com incerteza sobre o futuro. É a estes que devemos dar sinais claros de confiança e de grandeza. E é às crianças e aos jovens que devemos transmitir que o 25 de abril lhes pertence. Que o devem honrar, que o devem preservar que o devem engrandecer.

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E esta tarefa não é simples. Vivem hoje noutro tempo e noutro mundo distante do tempo e do modo de 1974.  Mas por não ser uma tarefa simples não podemos falhar nem nos pequenos, nem nos grandes momentos como aquele em que nos encontramos.

Em estado de emergência as palavras de ordem são confinamento e responsabilidade que se exigem a todos.

O que está em causa é nada mais nada menos do que a vida das pessoas. Por isso não pode haver relaxamento nos comportamentos de cada um. Estamos num contexto nunca visto desde há muito. De incerteza e de desconhecimento. Dizemos às crianças e aos jovens que a sua vida tal como a conhecem está suspensa em razão do combate a uma ameaça invisível. Uma ameaça que mata, uma ameaça que destrói, uma ameaça que desconhecemos.

E as crianças e jovens compreendem com generosidade e com responsabilidade. Adaptam-se, demonstram resiliência ao perder – temporariamente, mas agora – uma parcela significativa da liberdade que lhes pertence.

Da liberdade com que nasceram. Da liberdade que ouvem ano após ano ser uma conquista de abril. Prefiro a expressão, e comungo-a, que abril devolveu a liberdade a quem ela pertence.

E eis que em contexto de emergência chega o abril da liberdade. Chega mais uma oportunidade de cativar as crianças e jovens para a importância de abril. E não são elas a prioridade de abril? Não é com elas que abril irá permanecer e ser transmitido para gerações futuras? Não é delas abril? Ou também delas?

Mas o abril que lhes transmitimos hoje é provavelmente o abril que não querem. O abril contestado, o abril do paradoxo, o abril das elites, o abril apropriado, o abril da dissonância, da inconsistência e da incompreensão. O abril de quem julga que o abril é só seu. O abril que não é abril.

Por causa de abril hoje podemos pensar e dizer. E podemos contrariar e lutar. Podemos discordar e defender. Podemos querer ou não querer. Podemos exibir aquilo que nos pertence de pleno direito, a liberdade de cada um, com a qual nascemos e com a qual morremos. E com a liberdade encaramos a responsabilidade que abril significa.

Este património político que abril simboliza é congénito nas crianças e jovens de Portugal. Nasceram com ele garantido. Em contexto de emergência, no primeiro e mais revelador momento das suas vidas, compreendem a discrepância, cuja justificação provavelmente lhes é alheia, e que potencia afastarem-se do abril que mal conhecem.

Porque a vida está suspensa com exceção para os serviços mínimos, crianças e jovens permanecem em casa. Compreendem, como todos compreendemos, que é necessário assegurar serviços no quadro do Estado de Direito. Neste quadro votar declarações de emergência e leis de implementação constitui, sem dúvida, serviços mínimos.

Mas dificilmente compreendem que comemorar abril no modelo tradicional, mas já por quatro vezes interrompido, integre o conceito de serviços mínimos. Abril não se perde por abril dar o exemplo. E é nestes momentos de encruzilhada que o simbolismo mais marca. É nestes momentos que se fortalece a consciência para os valores e princípios que se impõe sejam transmitidos.

A vida honrou-me com a oportunidade de participar oito vezes nas cerimónias, no parlamento, de abril. E privilegiou-me com a oportunidade de discursar em abril de 2017, discurso que terminei com uma referência ao português, que acabáramos de perder, que do exílio denunciou ao mundo o “Portugal Amordaçado”, que indicou e desbravou o rumo: Primeiro da escolha – e depois – da consolidação da liberdade, da democracia e da descentralização, da opção europeia, e da relação solidária e fraterna com a nossa pátria imaterial que é língua portuguesa e a enorme comunidade que a partilha.

Nunca votei em Mário Soares, as minhas escolhas foram e são outras, contestei-o e contesto-o em alguns percursos e em algumas opções. Mas admirei-o e agradeço-lhe. E admirei-o sobretudo por ter sido, ao lado de várias outras personalidades de diversos quadrantes políticos que, sem tréguas, lutaram por um Portugal democrático, um dos mais marcantes rostos da luta para que, na continuação de abril, Portugal permanecesse do lado livre, democrata e inclusivo de um mundo dividido por um muro, entretanto derrubado.

Com a sua visão optou, em 1992 e em 1993, por celebrar abril fora do parlamento. Independentemente dos contornos específicos da decisão dos quais permito-me discordar, aproveitou para passar a mensagem que ficou para a história. “Os jovens de hoje, para quem a liberdade é tão natural como o ar que respiram, e que têm diante si rasgados os horizontes do futuro, não terão porventura a consciência clara da complexidade do processo político que nos conduziu até aqui…..”

Pois essa consciência transmite-se pelo exemplo. Em 2020 o exemplo não foi dado.

24 de abril de 2020