1. No passado dia 13, a Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais na Igreja Católica ou, simplesmente, Comissão Independente (CI), apresentou o seu relatório final. Num país em que, por regra, a culpa morre solteira – recorde-se a impunidade em que permanecem um antigo primeiro-ministro e um ex-banqueiro – é louvável que a CI tenha concluído o seu trabalho no prazo previsto.

2. Terminada a investigação, era suposto a CI entregar o relatório final a quem lhe tinha encarregado esse trabalho, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), à qual competia a sua análise e divulgação. Foi, portanto, escusada a apresentação pública pela CI, em ambiente de grande espectacularidade mediática. Dada a gravidade da matéria, teria sido preferível um estilo mais sóbrio e que, por respeito pelas vítimas e pela sua dor, se evitasse a descrição de episódios escabrosos (cf. Ef 5, 3).

3. O resultado estimado, para o número de menores que foram vítimas de abusos sexuais na Igreja católica, nos últimos 72 anos, segundo 512 denúncias validadas, é de 4. 815 (tratando-se de uma mera estimativa, é enganosa a referência até à ordem de grandeza das unidades, como se se tratasse de um resultado exacto). É, decerto, uma cifra superior ao que muitos fiéis esperavam, mas também inferior ao que outros supunham.

Para este efeito, a CI entrevistou 34 vítimas; recebeu 9 testemunhos, por escrito, de outras tantas pessoas abusadas; teve conhecimento, pela imprensa, de 19 casos de possíveis abusos; e constatou, nos arquivos de 20 congregações religiosas, mais 8 casos, o que totaliza 70 prováveis vítimas. A partir destes dados, a CI extrapolou o número de menores abusados para um total de 4.815. Se a CI apresentasse resultados muito aquém da expectativa gerada pela enorme pressão mediática, é provável que fosse questionada a sua isenção e seriedade.

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Se é verdade que um só caso é já excessivo – e nunca será demais dizê-lo – também é certo que os números contam e, por isso, a CEP, com humildade e coragem, os quis apurar, embora o total estimado careça ainda de confirmação científica.

4. A este propósito, a Professora Mafalda Miranda Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, escreveu na sua página de uma rede social: “A comissão anuncia que encontrou cerca de 4800 vítimas de abusos sexuais cometidos por padres. Trata-se de um número a que se chega, segundo percebi, de acordo com extrapolações matemáticas, mais ou menos duvidosas, que se baseiam em apenas 34 testemunhos e 500 formulários anónimos (sublinho, anónimos) recebidos por internet, cuja credibilidade ninguém pode assegurar, até porque nada impede que uma pessoa submeta mais do que uma resposta. A sua fidedignidade é tanta que, num deles, refere-se que num seminário, que tinha capacidade para albergar 200 crianças, tinham sido violados num ano mais de 1000 jovens. Na televisão, surgem testemunhas de pessoas que dizem ter preenchido o formulário como reação a declarações do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, que tinham considerado injustas.

5. Dada a pouca credibilidade dos testemunhos anónimos e a abundância dos discursos de ódio anticlerical, porque há instituições que, como a Igreja católica, a ninguém deixam indiferente, a CI só enviou 25 denúncias para o Ministério Público, que arquivou cerca de metade, por falta de indícios elementares. As restantes serão investigadas até que se chegue à certeza, pelo menos moral, de que o facto denunciado aconteceu e pode ser imputado ao autor denunciado.

6. As denúncias validadas pela CI não correspondem necessariamente a crimes efectivamente praticados, porque uma denúncia, mesmo verosímil, só resulta em condenação depois de confirmada em sede judicial e transitada em julgado.

7. O relatório final da CI proporciona à hierarquia eclesiástica o conhecimento necessário para a responsabilização criminal e eclesial de todos os abusadores que sejam ministros da Igreja católica. O instituto legal da prescrição pode inviabilizar o procedimento criminal respectivo, mas não impede que um sacerdote, se for o caso, seja afastado do ministério sacerdotal, como é, desde há bastantes anos, a praxe da Santa Sé.

8. A dimensão do escândalo dos abusos de menores na Igreja em Portugal não é comparável, em termos numéricos, aos verificados noutros países, não só porque se usaram diferentes métodos de avaliação, mas também porque a CI foi a que teve, comparativamente, menos tempo para levar a cabo a investigação.

9. Com esta sua iniciativa, a CEP realiza, por iniciativa própria, uma importante mudança de paradigma em relação à pedofilia na Igreja em Portugal. Até agora, tinha prevalecido uma lógica corporativa de defesa da instituição, que levou ao encobrimento de muitas situações. Mas, com a investigação da CI, a CEP optou por uma abordagem que privilegia a verdade e a justiça. A Igreja católica portuguesa está empenhada em dar absoluta prioridade às vítimas e à defesa dos seus inalienáveis direitos.

10. A hierarquia católica não enjeita as suas responsabilidades no que se refere aos abusos de menores, embora não seja crime, segundo a lei portuguesa, o encobrimento de situações desta natureza, por quem não tem o dever de ofício de as denunciar, como é o caso dos bispos diocesanos em relação a abusos praticados por elementos do seu clero. Contudo, em termos éticos, é exigível que a hierarquia eclesial actue, com celeridade e determinação, ante qualquer indício, ou denúncia, de crimes desta natureza, nomeadamente impedindo ao alegado abusador qualquer contacto com possíveis vítimas.

11. Os abusadores de menores, qualquer que seja o seu estatuto eclesial, devem responder, civil e criminalmente, pelos seus actos, sendo-lhes igualmente imputável a indemnização a que as suas vítimas têm direito e que deverão satisfazer com o seu património pessoal. É justo e necessário que os ofendidos sejam ressarcidos pelo crime praticado, mas nenhum valor material poderá compensar o dano que sofreram.

12. Enquanto pessoa moral colectiva, a Igreja não é responsável pela actuação dos seus ministros quando estes, faltando gravemente aos compromissos de castidade, obediência e pobreza, assumidos na sua ordenação sacerdotal ou profissão religiosa, procederam criminosamente. Aliás, a Igreja não responde por quaisquer delitos praticados, a título individual, pelos seus ministros (furtos, infracções de trânsito, etc.).

13. A título de precedente, recorde-se que, no mediático caso Casa Pia, foram condenados, entre outros, um provedor e um funcionário da instituição, um quadro superior do Ministério dos Negócios Estrangeiros e um conhecido locutor televisivo. Contudo, para efeito da indemnização das vítimas, não foram pedidas responsabilidades às entidades em que os referidos abusadores prestavam serviço.

14. Na realidade, a Igreja católica portuguesa não só não foi cúmplice dos abusadores, como foi sua vítima, quer nas pessoas cristãs abusadas, que não são menos Igreja do que os seus pastores – seria clericalismo negá-lo! – quer no enorme dano causado à instituição. Pode, pois, constituir-se como parte ofendida nos processos a instaurar aos prevaricadores.

15. A Igreja é santa na sua origem, nos seus meios e nos seus fins, mas nem todos os seus membros vivem a moral exigida pelo baptismo. Neste sentido, a Igreja dos santos e dos mártires é também a Igreja dos pecadores, desde que estejam arrependidos e tenham um sincero propósito de emenda, como Pedro, depois da tripla negação do Mestre.

16. Desde sempre, a Igreja anuncia a verdade, mesmo quando esta lhe é dolorosa: a traição de Judas Iscariotes nunca foi negada, nem a sua condição de apóstolo. Mas, para um apóstolo traidor, houve onze que foram santos e mártires. Também agora, para um clérigo indigno, há dezenas de padres heroicos que, diariamente, se gastam no abnegado serviço de Deus e do próximo.

17. Com esta sua espontânea confissão, a Igreja católica, por sua livre iniciativa, deu testemunho do seu sincero compromisso com a verdade e com a justiça. É de esperar que a sociedade civil reconheça a nobreza deste gesto e o saiba imitar.

18. Não obstante os abusos de menores acontecerem sobretudo nas famílias, em instituições sociais, educativas e desportivas, ainda nenhuma instituição tomou, em Portugal, uma iniciativa semelhante à da CEP, que é, portanto, pioneira neste combate.

19. Não basta acabar com a pedofilia na Igreja, é preciso pôr termo ao abuso de menores em todo o país e no mundo inteiro. Não há palavras para descrever o horror deste crime, nem a gravidade deste monstruoso pecado. São devidos os mais pungentes pedidos de desculpas às vítimas, por quem toda a Igreja reza, sentindo como própria a sua dor. Importa analisar este drama com objectividade, sem ceder à visão cega dos fanáticos religiosos, que negam esta indiscutível realidade, nem ao ódio anticlerical dos que vêm em cada padre um pedófilo e consideram que a Igreja católica é uma associação de criminosos. A credibilidade da Igreja requer a aplicação, senão na letra, pelo menos no espírito, do severo ensinamento de Jesus Cristo: “se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar” (Mt 18, 6).

20. Enquanto houver seres humanos à face da terra, haverá pecados e, por isso, infelizmente, os abusos de menores nunca estarão definitivamente ultrapassados. Também na Igreja não se pode garantir que, de futuro, não voltarão a acontecer crimes desta natureza hedionda, apesar da CEP estar firmemente decidida a tomar todas as medidas necessárias para a extirpação deste mal na Igreja portuguesa. Mesmo que não se possa garantir, em termos absolutos, que todas as instituições católicas – paróquias, movimentos, colégios, campos de férias, etc. – são agora lugares totalmente seguros, pode-se, no entanto, afirmar que a Igreja portuguesa está a fazer tudo o que está ao seu alcance para que, no âmbito das suas actividades, os crimes do passado não se repitam e os menores, bem como as pessoas mais vulneráveis, sejam sempre respeitados na sua dignidade.