O jornal Público dedicou duas páginas da sua edição de 22 de Maio passado a Marco Marzano, um sociólogo italiano que veio a Portugal lançar o seu livro A Casta dos Castos. Os Padres, o Sexo e o Amor.

Não obstante a sua condição de sociólogo e de docente na Universidade de Bérgamo, Marzano manifesta um grande desconhecimento em relação a questões históricas e teológicas. Não espanta que não saiba de matérias que transcendem a sua ciência social, mas surpreende que se pronuncie sobre esses temas e que um jornal nacional lhe dê tanto destaque. Que diriam os sociólogos, ou a comunicação social, se um padre, a propósito dos alegados casos envolvendo o Centro de Estudos Sociais, de Coimbra, escrevesse sobre A casta dos não castos. Os sociólogos, o sexo e o amor?!

Marzano afirma, por exemplo, que “o celibato obrigatório foi introduzido na Idade Média”, sugerindo que é uma prática anacrónica. Na verdade, já no século primeiro, para além de Jesus de Nazaré, também João Baptista, os apóstolos e muitos dos primeiros discípulos, como os mártires Paulo e Estêvão, foram celibatários. Fizeram igualmente essa opção, com total liberdade, os homens e mulheres que, desde há dois mil anos, se decidiram pela vida religiosa. Também sempre houve leigos católicos que, por se sentirem chamados a uma vida celibatária, assim viveram e se realizaram, sem que a isso fossem obrigados pela lei da Igreja.

É certo que, durante os primeiros séculos, a Igreja católica fez a experiência de ordenar, como presbíteros e bispos, homens casados. Mas muito rapidamente, a finais do século III e princípios do IV, chegou à conclusão contrária: o Concílio de Elvira, por volta do ano 300, impôs, no sul da Península Ibérica, o celibato sacerdotal, e o Concílio ecuménico de Niceia, no ano 325, proibiu aos clérigos a coabitação com mulheres que não fossem a mãe ou as irmãs. Esta prática passou a ser lei geral, para a Igreja católica latina, no 1º Concílio de Latrão, em 1123, há precisamente 900 anos. Portanto, a Igreja católica fez a experiência dos padres casados e, só depois de comprovar, na prática, a conveniência do celibato sacerdotal, segundo o exemplo de Jesus Cristo, é que o instituiu, primeiro nalgumas regiões e, depois, em toda a Igreja católica latina.

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Roça o ridículo a afirmação de que os sacerdotes católicos “apresentam-se como uma espécie de semideuses (sic!), alguém que está algures entre Deus e as pessoas normais”. Este sociólogo que, pelos vistos, considera que os padres são ‘anormais’, esquece que, para a liturgia católica, os dois principais santos são duas pessoas casadas: José e Maria! Eram, não obstante as particularidades da sua união, verdadeiramente marido e mulher, nenhum deles foi padre e estão muito acima de todos os santos celibatários, fossem eles papas, cardeais, bispos, padres, religiosos ou leigos.

É caricata a afirmação de que “o celibato está também ligado ao exercício do poder da organização sobre os seus padres: ao controlar a sua sexualidade, a Igreja consegue controlá-los mais facilmente”. Embora Marzano não saiba, há padres católicos casados, como são os da Igreja católica oriental, que se regem pelo seu direito próprio e não pelo Código de Direito Canónico. Também o são os pastores protestantes já casados, sobretudo anglicanos, que foram recebidos na Igreja católica como sacerdotes e, como tais, exercem este ministério. Mas nem estes, por serem casados, são menos controlados, nem aqueles, por serem celibatários, são mais controlados. É óbvio que este sociólogo só conhece a linguagem do poder e, por isso, não percebe a natureza e dinâmica da Igreja.

Esta entrevista não é inocente: pretende reforçar a infundada suposição de que a obrigação do celibato sacerdotal é responsável pelos abusos de menores praticados por eclesiásticos. Marzano afirma que “mais de 90% dos padres não são abusadores”, mas depois conclui o contrário, ou seja que, “se a Igreja abolisse o celibato obrigatório, assistiríamos a um declínio nos episódios de abuso sexual”! Contudo, é nas famílias onde há mais pedofilia e, como afirmou Charol Shakeshafte, “o abuso de menores em escolas é mais de cem vezes superior aos abusos por padres” (Sexual Abuse of Minors by Catholic Clergy, 1-8-2011).

Por outro lado, “os padres não são mais abusadores do que os outros homens” (Newsweek, 4-7-2010). De facto, a maioria dos pedófilos são casados, como também o são a maioria dos adultos e, portanto, seria mais lógico concluir que o casamento, e não o celibato, favorece a pedofilia. Se quase todos os reclusos são casados, pela mesma ordem de ideias dever-se-ia então afirmar que o matrimónio propicia a delinquência …

Nas Igrejas evangélicas, ditas protestantes, onde os pastores são, em geral, casados, é maior a incidência de abusos de menores por eclesiásticos, do que na Igreja católica, cujos padres são solteiros, o que leva a constatar que o celibato, não só não causa essa criminosa anomalia, a todos os títulos detestável, como, pelo contrário, ajuda a preveni-la. Ernie Allen, presidente do National Center for Missing and Exploited Children, nos Estados Unidos da América, que estudou casos de abusos de menores por pastores evangélicos e ministros de outras religiões, declarou que “a Igreja católica não é, nesta matéria, uma instituição mais problemática do que qualquer outra”. Por sua vez, Thomas Plante, Professor de Psicologia na Universidade de Santa Clara, também nos EUA, afirmou que, “se as pessoas pensam que há maior probabilidade de se ser abusado por um padre, do que por um familiar, treinador desportivo ou professor da escola, desconhecem a realidade”.

Marzano desconhece a realidade da vida sacerdotal e, por isso, afirma que os padres “chegam aos 40 anos de idade sexualmente imaturos, quase infantis”! Ora, os padres nasceram numa família, conviveram com outros rapazes e raparigas, em casa e nas escolas onde estudaram, muitos também frequentaram a universidade e até – como foi, entre tantos outros, o meu caso – namoraram, antes de optar pelo sacerdócio. Todos, muito antes de serem padres, já se tinham apercebido de que há homens e mulheres, e de que há uma recíproca atração, que também eles, como qualquer mortal, experimentam. Aliás, não são os únicos que têm de controlar os seus instintos, pois também os católicos casados têm de se inibir em relação a quem não seja o seu cônjuge, sem que tal privação cause qualquer frustração ou comportamento desviante. Por sinal, Marzano confunde ‘castidade’ e ‘celibato’: todos os cristãos, também os casados, devem viver a castidade, que é o exercício da caridade no que respeita ao sexo, embora só os solteiros, sejam ou não padres, devam viver a continência perfeita, isto é, abster-se das relações sexuais.

Do mesmo modo como, fora da Igreja, há quem opte livremente por permanecer solteiro, também entre os fiéis cristãos há quem se sinta chamado a uma vida celibatária, como leigo, religioso ou sacerdote. Não é a Igreja que impõe o celibato aos candidatos ao sacerdócio, mas escolhe, entre os homens que voluntariamente optaram pelo celibato, aqueles a quem chama para o ministério sacerdotal. A opção pelo celibato é, portanto, sempre voluntária e prévia ao chamamento para o sacerdócio ministerial. E, para que ninguém o faça sem saber ao que se compromete, a Igreja só ordena homens que tenham 25 anos, uma idade em que se supõe já ter alcançado a suficiente maturidade afectiva e psicológica e que, por sinal, é bastante superior à exigida aos que contraem matrimónio.

Ao invés do que Marzano supõe, a vida sexual activa, de que os padres católicos latinos estão efectivamente privados, não é a única, nem a principal forma de realização afectiva. Também não é verdade que, como afirma, os sacerdotes estão condenados a uma existência solitária: a vida social do presbítero diocesano é, pelo contrário, muito intensa, talvez mais do que a da maioria dos leigos casados e com filhos. De facto, o pároco é, como a palavra ‘padre’ expressa, ‘pai’ de todos os fiéis confiados ao seu ministério pastoral.

Como já acontecia com os apóstolos (At 6, 1-4), o problema dos padres não é, em geral, a solidão, mas a falta dela, de que tanto precisam para não descurarem a oração, que é a base e o alimento da vida sacerdotal. O padre católico não é, como Marzano insiste, um “funcionário da Igreja” – termo depreciativo que utiliza repetidamente – mas uma pessoa apaixonada que, como Jesus, se entrega de alma e coração a Deus e, por amor a Deus, ao serviço de toda a humanidade.

Que o celibato não propicia os abusos sexuais, mas possibilita aquele que Jesus chamou o “maior amor” (Jo 15, 13), comprova-se pelo exemplo dos santos: não é por acaso que, embora pecadores, todos chegaram a ser, cada qual a seu modo, seres humanos exemplares, à imagem e semelhança do seu Mestre, não só perfeito Deus, mas também perfeito homem. Quem se atreveria a dizer que Paulo de Tarso, Francisco e Clara de Assis, António de Lisboa, Teresa de Ávila, Catarina de Sena, João de Deus ou Teresa de Calcutá, que viveram em celibato, ou seja, “vidas solitárias”, foram “sexualmente imaturos, quase infantis”?! Até crianças, como Francisco e Jacinta de Fátima, ao contrário de tantos que, nem sequer na velhice, alcançam a maturidade afectiva, foram luminosos exemplos de felicidade humana e sobrenatural, graças à sua vida celibatária de total entrega a Deus e ao próximo.