Vamos falar de divórcio. Para falar de divórcio temos de falar de casamento. Em qualquer dos cenários, o ramalhete não está completo sem filhos menores e uma extensa lista de ativo e passivo em comum, porque sempre é mais barato casar no regime supletivo de comunhão de adquiridos. Poupamos agora alguns euros, que sempre dão jeito para as lembranças dos convidados, já que isto é seguramente para a vida toda.

Pois bem. A pandemia tem vindo a ceifar vidas, mas não deixa de causar estrago nos mais afortunados. Com ou sem pandemia, com ou sem confinamentos, teletrabalho, escolas encerradas e moratórias, o divórcio sempre existiu. Sempre se fez – ou desfez – da mesma forma. Há um pressuposto inicial que transmito sempre a quem me procura nestas circunstâncias: se chegámos a esta conversa, se chegámos a vias de facto, já ninguém vai ganhar. A preocupação ingénua é muitas vezes essa: ganhar. Nada mais longe da verdade, na perspetiva de quem tem o privilégio de tocar nestas vidas, de forma técnica e distanciada.

Se chegámos a este ponto, já todos perderam. A menos que seja um casamento arranjado, um negócio simulado, portanto, há um projeto em comum que ficou pelo caminho. Pode até haver uma das partes que se portou mal ou que está mais determinada que a outra, ou até podem estar ambos aliviados e perfeitamente em sintonia. Mas não vale a pena prorrogar a realidade: perderam. Ambos. Se houver filhos, então, dá-se o efeito borboleta. Este momento do “sim, aceito”, proferido perante o Conservador na conferência de divórcio ou o Juiz na tentativa de conciliação bem-sucedida, ou da promoção do divórcio por sentença judicial, quando não há prévio entendimento, repercute-se no tempo. Nos intervenientes diretos e nos acidentais. Os filhos, os familiares, até os amigos e conhecidos. Os últimos porque vão ter tema para opinar desenfreadamente na pausa do café e os primeiros porque vão iniciar o luto do futuro. De um futuro que já não será e do qual são forçados a despedir-se. O futuro alternativo pode ser exponencialmente mais risonho, mas o ser humano precisa de tempo para se adaptar à mudança. Nada a fazer.

Isto para dizer que, com maior ou menos expressão, volume ou consciência, assisto sempre, nestes processos, a uma dor pulsante. Os números existem e os divórcios e separações estão na ordem do dia. Aumentaram as consultas exploratórias e as pessoas querem saber o que pode acontecer, se.

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Voltei a tocar com muito mais frequência esta área do Direito, da qual a Inês não gosta, mas da qual a Dra. Inês de Almeida Albuquerque retira sempre uma oportunidade de trabalhar pessoas. O que é, por si, gratificante. Raras são as vezes em que, em processos com algum grau de litigância, não sugiro um acompanhamento psicológico, para o próprio e invariavelmente para as crianças. É uma responsabilidade, acima de tudo, de não meter a foice em seara alheia. Mas, no que posso meter a foice, meto.

Se é um requisito jurídico que as partes estejam de acordo em se divorciar, nos divórcios com consentimento, sou realmente obrigada a perguntar. Se a minha profissão me reconhece o ónus de tentar, em todos os casos, a conciliação das partes, não posso evitar. Mesmo que estas regras fossem meramente opcionais, continuaria a fazê-lo. Em contramaré, quando olhamos para os números, ofereço uma estatística que me deixa muito mais feliz. As reconciliações.

Um contrato de prestação de serviços, dá trabalho. Um contrato de promessa, dá trabalho. Um contrato de casamento civil, dá trabalho. A uma prestação corresponde uma contraprestação.

Não falo dos alegados deveres conjugais, na ótica chauvinista. Falo da vontade, de trabalhar o bem-estar do outro e o bem-estar próprio, mas não como conceitos excludentes. A mútua compreensão. Não como sacrifício, mas como autossatisfação. Os meus números podem não fazer estatística, mas orgulhosamente falhei em vários processos recentes de divórcio, que chegaram à minha sala. Analisando sem qualquer conhecimento técnico e, portanto, metendo a foice em seara alheia, parece-me que a pandemia testou a paciência de todos e tem servido de teste de stress a muitos casamentos ou relações análogas. Estar com alguém 24/7 é difícil, por mais que se ame o(a) companheiro(a).

As pessoas casam na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, mas ninguém se comprometeu a amar e respeitarno confinamento. De repente, a ideia começa a ganhar forma e os casais decidem, mais ou menos amigavelmente, seguir caminhos separados. Há quem o faça brilhantemente. Quase sem danos. Mas não é, pelo menos, a realidade que me chega. Certo é que nos processos despoletados ou acelerados pela pandemia, tenho concluído alguns sem chegar a haver uma peça escrita ou acabando por requerer ao tribunal a extinção da instância. Precisamente por reconciliação. De facto, com alguma distância, tenho conhecido casais que retomam o projeto em curso, uns passos atrás de onde o deixaram e se reconciliam. Vale o que vale, mas pelo menos na minha carteira de memórias profissionais, nunca assisti a tantos desfechos destes como agora. A tantos processos de divórcio que não são bem-sucedidos.

Resta-me concluir que a pandemia tem, efetivamente, rompido com muitos casamentos (ou, em abono da verdade, a pandemia tem apenas colocado a nu um conjunto de problemas que não podem ser imputados ao flagelo), mas também tem colocado muitos casais sob o escrutínio da auto e hétero-análise e o marcador tem-se reequilibrado. Com alguma distância e ponderação, muitos têm respondido “não, não aceito”.