1. Três anos depois, retomo o tema neste jornal, pegando no título do que então foi escrito: “Sim, o Tribunal Central de Instrução Criminal deve ser extinto!” Aqui, para quem quiser voltar ao passado.

2. Este assunto está em cima da mesa há anos, tendo ganho novos e relevantes defensores, como o anterior e o actual presidente do Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, e tendo entrado na actualidade mediática de forma mais afiada por causa da “Operação Marquês”.

Mas para além da extinção do TICÃO, como na gíria é conhecido o Tribunal Central de Instrução Criminal, deveria aproveitar-se a oportunidade para revisitar a organização de outros tribunais, tendo em vista uma maior simplificação e eficácia da estrutura judiciária.

3. Todos os sistemas precisam de se organizar de forma o mais eficiente possível, de modo a dar respostas às necessidades dos que a eles recorrem.

A Lei de 2013, da Ministra Paula Teixeira da Cruz, implementou uma reforma profunda na estrutura organizacional dos tribunais, afrontando sem medo um pensamento consolidado de décadas e insustentável em face da evolução da sociedade. Mas, com a experiência acumulada destes últimos anos, é possível ir mais longe.

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Vejamos, sinteticamente.

4. Sobre o TICÃO não há muito mais a dizer em relação ao que deixei escrito no meu artigo de 22 de Setembro de 2018, que se mantém actual. Mas talvez seja útil relembrar duas ou três coisas.

O TICÃO está transformado numa insuportável passadeira vermelha de vaidades pessoais. Ou é o juiz Carlos Alexandre, que é visto como sendo o protector das acções do Ministério Público; ou é o juiz Ivo Rosa, que se assume como o zelador do formalismo judiciário, olhando à lupa as decisões do MP. O Yin e o Yang de uma história de ficção sem suspense e cujos resultados se conhecem antecipadamente!

Só em Portugal é que era imaginável que houvesse um tribunal com esta importância com um único juiz! A reforma de 2013 acrescentou outro juiz ao quadro, mas está provado que foi uma solução mitigadora e sem efeitos reparadores.

5. O TICÃO é um tribunal de competência especializada como também é, por exemplo, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa (chamemos-lhe TICA). Os juízes do TICA são igualmente especializados como os do TICÃO. A única diferença é que a competência do TICÃO foi alargada a todo o território nacional, enquanto que a do TICA está restrita à Comarca de Lisboa.

Obviamente, que a questão territorial não é argumento, bastando a lei atribuir ao TICA uma competência territorial alargada quando tivesse de avaliar os processos vindos do DCIAP.

6. O que poderia ser argumento, era se o TICA tivesse competências diferentes do TICÃO. E não tem.

Como poderia ser argumento, se o TICA tivesse juízes menos qualificados do que o TICÃO. E não tem!

Além do mais, por oposição aos actuais dois juízes do TICÃO, o TICA tem sete juízes. Transferindo-se os actuais dois juízes do TICÃO para o TICA, este tribunal passaria a ter nove juízes, o que seguramente seria muito útil para a aceleração processual!

Não há, pois, com todo o respeito por quem pensa diferente, argumentos válidos ou objectivos para manter o TICÃO.

7. Os puristas da defesa do TICÃO argumentam algumas vezes com a necessidade de existir um tribunal que seja a projecção do DCIAP, que é também um departamento central do Ministério Público para a investigação de crimes mais graves.

E argumentam que a sua extinção seria um erro no combate à corrupção!

Mas esse argumento também não convence.

Quem combate a corrupção é o Ministério Público e as polícias! E o Tribunal de Instrução Criminal existe para fiscalizar se a investigação criminal cumpre as regras legais. Tão só isso. Não lhe cabe julgar, porque essa função está cometida aos Tribunais Centrais Criminais e a um colectivo de três juízes.

Acredito que o Ministério Público precise de um DCIAP. Mas acredito, também, que precisa de uma reformulação profunda dos seus métodos de investigação. Os megaprocessos deveriam ser “proibidos” por serem a forma mais eficiente de conduzir à prescrição de crimes, à dificuldade de prova, sendo que, não poucas vezes, estão em parte sustentados em conexão de factos colados com adesivo de baixa qualidade.

E a sociedade – todos nós – precisa de um Tribunal de Instrução Criminal sem protagonistas, sem estrelas, que seja competente na sua função de avaliar indiciariamente se os factos apurados devem ir a julgamento, ou não.

8. Não há forma de sustentar um qualquer TICÃO, que foi projectado como uma boa ideia, mas que acabou por ser uma má realidade.

Mas o TICÃO é, apenas, parte de um problema maior que é o sistema judiciário no seu todo.

Fala-se recorrentemente em eficiência e eficácia, mas não há milagres, quando as bases organizacionais que sustentam e permitem a decisão judicial não estão ajustadas à realidade.

Dois exemplos porque o texto já vai longo.

9. O primeiro, tem a ver com a organização dos tribunais de primeira instância.

A lei de 2013 introduziu grandes alterações na forma de organização e na nomenclatura dos tribunais de primeira instância. Em 2016, o Governo socialista introduziu alterações à matriz existente, fazendo correcções positivas e outras nem tanto.

Os tribunais de primeira instância podem ser ajustados nas suas denominações e na sua estrutura, tornando-os mais ”user friendly” para os cidadãos.

Mas a questão maior, relacionada com a forma de organização desses tribunais, está na reforma profunda dos Julgados de Paz. Reforma é um eufemismo, porque a palavra certa seria extinção, criando-se no seu lugar tribunais municipais em todos os concelhos, de modo a assegurar a proximidade da decisão em todas as causas de baixa intensidade que envolvam direitos disponíveis, deixando para os tribunais de primeira instância os litígios de maior complexidade.

10. O segundo ponto de uma reforma exige fôlego e coragem.

Os tribunais administrativos e fiscais deveriam ser extintos como jurisdição autónoma da jurisdição comum, criando-se uma jurisdição única de primeira instância, e integrando nela juízos administrativos e juízos fiscais especializados.

É preciso que se tenha consciência que duas jurisdições autónomas (a civil e criminal, por um lado, e a administrativa e fiscal, por outro) leva à duplicação de entidades e promove o desperdício na eficiência da decisão judicial. A situação actual obriga a que exista uma duplicação de tribunais de primeira instância, uma duplicação de tribunais de recurso intermédio, uma duplicação de tribunais superiores. Cereja no topo do bolo: obriga à duplicação de Conselhos Judiciários, de títulos, de lugares no protocolo de Estado, etc, etc.

Num país tão pequeno como Portugal nada disto faz sentido.

11. É tempo de se começar a pensar sem pressupostos ou pré-juízos, sem amarras a um passado que já não existe. Se não mudarmos com coragem as estruturas da Justiça, andaremos em permanente deriva num presente contínuo, um após outro, sem futuro.