Na crónica do sábado passado, sobre “O misterioso caso do professor X”, já se referiu, sumariamente, a primeira parte desta história, que tem por protagonistas várias eminências pardas e, como vítima, um jovem professor católico. Resta acrescentar o mais recente episódio deste caso, expressivo dos excessos do clericalismo, que o Papa Francisco considera ser um dos principais males da Igreja.
A reabertura do processo do professor X ocorreu por ocasião da realização, no verão de 2022, da entrevista “Amen – Francisco responde”, da Disney+, em que o Papa respondeu a vários jovens, entre os quais Juan C., que aproveitou para expor o seu ‘caso’. A partir de então, como referiu o professor X no seu blog, “o Papa escreveu várias cartas a Juan [C.] – que as pessoas que lhe são mais próximas facultaram à imprensa, que as publicou – nas quais diz-lhe que pode estar sossegado porque vai dar início a uma investigação e que não tem por que se preocupar, porque vai ser nomeado um novo tribunal, presidido por José António Satué, bispo de Teruel, e que o manterá informado sobre os desenvolvimentos do caso.”
Surpreende que o Papa Francisco tenha querido expor, na praça pública mundial, através de um programa televisivo de grande audiência, um caso que está sob a alçada da justiça, vexando o professor X e a instituição eclesial a que pertence. Ao dar tempo de antena a apenas uma das partes neste processo, violou o princípio do contraditório. Também não respeitou a sentença, transitada em julgado, do Supremo Tribunal de Justiça espanhol, nem a decisão definitiva do ‘seu’ Dicastério para a Doutrina da Fé, que concluiu a inocência do professor X. É contraditório que, sem anular essa declaração, nomeie um novo tribunal eclesiástico, para uma causa já julgada pela Igreja. Por último, ao dizer a Juan C. que não tem por que se preocupar com este novo julgamento, parece afirmar que o seu resultado já está, a priori, decidido.
Ante tantas e tão graves irregularidades, o professor X pediu, por carta entregue na Nunciatura em Madrid, para ser recebido por Francisco, mas não obteve resposta. É insólito que o Papa de “todos, todos, todos”, num caso sub judice, receba uma parte, mas não a outra, que é até a verdadeira vítima, violando os princípios da imparcialidade e independência do poder judicial na Igreja.
Como o professor X então escreveu no seu blog, “no passado mês de Setembro [de 2022], recebi a notícia de que a Santa Sé tinha decidido abrir um novo inquérito, para ‘apurar responsabilidades e ajudar a curar as feridas produzidas’. Antes de que eu, ou os meus advogados, fossemos notificados, a notícia foi publicada nos meios de comunicação social. A notícia era já uma sentença de culpabilidade”.
O Bispo de Teruel, ao assumir essa função, escreveu ao professor X, nos seguintes termos: “Como irmão na fé, permito-me recomendar-lhe, com todo o respeito que, se pelas circunstâncias que fossem, tivesse defendido a sua inocência de maneira incerta, aproveite esta oportunidade para reconhecer a verdade e pedir perdão ao senhor Juan e à sua família.”
Não só é deontologicamente incorrecto que um juiz se dirija, por uma via extra-judicial, ao arguido, como é eticamente inadmissível que manifeste, por escrito, a sua gravíssima e infundada convicção de que o professor X, no seu depoimento inicial, mentiu e de que é culpado. Com efeito, só se tivesse faltado à verdade, ou seja, “defendido a sua inocência de maneira incerta” (note-se o eufemismo maquiavélico!), é que faria sentido a insidiosa proposta para, agora, “reconhecer a verdade”! Mais grave ainda é a implícita suposição de que o professor X é culpado e, portanto, deve pedir “perdão ao senhor Juan e à sua família”: só se pode desculpar quem se reconhece culpado! Ora um juiz que, à partida, já ‘condenou’ aquele que vai julgar, não tem idoneidade jurídica, nem moral, para presidir ao seu julgamento. Em qualquer Estado de Direito digno deste nome, esta carta seria suficiente, senão para incriminar o seu autor, pelo menos para destituí-lo, por manifesta indignidade e suspeição, do exercício da função judicial, sobretudo neste caso.
Segundo o professor X, com esta nova acção judicial, “pretende-se aplicar-lhe uma normativa eclesiástica, que foi aprovada depois de realizados os factos alegados. Ora, os meus advogados disseram ao bispo de Teruel que o princípio da retroactividade da lei [penal] vai contra os direitos humanos. Também referiram outras irregularidades jurídicas como, por exemplo, que a Igreja aplique a um leigo a legislação eclesiástica [prevista para os clérigos e religiosos]; que o Papa, que nomeou este tribunal, receba uma das partes em litígio, mas não a outra, ou que eu tome conhecimento das suas decisões pelos meios de comunicação social. De facto, há uma semana, Religión Digital publicou a notícia, que eu ignorava, de que o Papa não me receberia, não obstante o pedido que lhe fiz, por carta, há já uns meses. Satué fez saber aos meus advogados que o Papa é juiz e legislador universal e que pode decidir o que quiser. Parece-me que o Papa está muito mal assessorado e, depois de os meus advogados terem falado com bastantes peritos, sei que há motivos suficientes para suscitar esta questão junto dos tribunais civis e penais espanhóis e internacionais.”
Mais recentemente, o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, que é o máximo órgão jurisdicional da Santa Sé, não só indeferiu todos os requerimentos apresentados pela defesa do professor X, como destituiu os seus advogados, que inicialmente tinham sido aceites pelo Bispo de Teruel. Tendo em conta esta situação, o professor X escreveu no seu blog: “Enfrento-me a um processo sem regras” – o que é uma crassa violação do princípio da legalidade – “em que a defesa é impossível, porque se estabeleceu um procedimento para que, de facto, o seja: os meus advogados, que têm muitos anos de exercício profissional, depois de terem sido aceites, foram recusados, sendo declarados incompetentes para assegurarem a minha defesa; é-me imposto um advogado oficioso, já que não terei outro remédio que não seja aceitar o que quiserem; calam-se quando se lhes diz que estão a aplicar uma lei penal com carácter retroactivo, o que é absolutamente contrário a todo o Direito penal. Tristemente, tudo se disfarça de legalidade, mas não é mais do que autoritarismo e prepotência.”
Uma impressão subjectiva, inquinada pela sua condição de arguido neste processo? Não parece porque, como o professor X também escreveu, “esta sensação de ilegalidade e de crueldade não a tenho só eu, porque também a manifestaram, com maior ou menor indignação, muitas pessoas, tanto do âmbito das leis e da cultura, como pessoas comuns com bom-senso, crentes e não crentes. Tudo isto me leva a crer que qualquer jurista ficaria muito triste e espantado, ao comprovar tanta falta de rigor e de independência.”
Apesar de, neste doloroso e interminável processo, o professor X ter contraído uma grave doença oncológica, talvez ocasionada pelo stress decorrente desta impiedosa perseguição, permanece firme na sua luta contra a prepotência, reclamando a verdade e a justiça a que tem direito: “que ninguém duvide. Vou continuar a lutar, porque sou inocente, porque estou a ser julgado de uma forma injusta e muito dolorosa, porque vale a pena, porque não quero que me espezinhem os que abusam da sua posição. Por tudo isto, responderemos à resposta da Assinatura Apostólica e, se necessário for, iremos até ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, porque, afinal, é disso que se trata: dos mais elementares direitos de qualquer pessoa.”
Com efeito, recusaram ao professor X direitos humanos básicos: o direito a conhecer a acusação que se lhe imputa, mas que lhe foi ocultada, bem como aos seus advogados (se é a mesma acusação pela qual já foi julgado, não procede um novo julgamento; se é uma nova denúncia, a mesma deveria ser dada a conhecer ao próprio e aos seus advogados); o direito a ser julgado segundo a sua própria condição laical (em vez de se lhe aplicar a legislação que apenas diz respeito aos sacerdotes e religiosos); o direito a ser notificado das diligências processuais (mas de que toma conhecimento por via da comunicação social); o direito à não rectroactividade das leis penais (pois pretende-se aplicar-lhe uma norma promulgada depois de ocorridos os supostos factos); o direito a não ser julgado bis in idem, ou seja, mais de uma vez pelo mesmo alegado crime (porque já o foi pelo Supremo Tribunal de Justiça espanhol e, eclesiasticamente, pelo Dicastério para a Doutrina da Fé); o direito de se fazer representar por advogados idóneos e da sua confiança (que foram inicialmente aceites pelo juiz agora nomeado, sendo depois arbitrariamente recusados, para que lhe fosse imposto um advogado oficioso, supostamente para que ‘colabore’ com o juiz na sua pretendida condenação); etc.
Uma prepotência que, diga-se de passagem, não envergonharia Torquemada, nem Roland Freisler, o juiz nazi que condenou à morte os irmãos Sophie e Hans Scholl. Nada de novo, se se tiver presente que, também vítima de uma calúnia sem fundamento, o Cardeal Pell cumpriu um ano de prisão, e que Santa Joana d’Arc foi executada pela Inquisição católica que, pelos vistos, ainda existe e funciona. Talvez fosse a isto que o Papa Francisco se referia quando, ao nomear o novo Prefeito do Dicastério da Doutrina da Fé, lhe pediu, por carta de 1-7-2023, que não recorresse aos “métodos imorais” que fizeram tristemente célebre o Santo Ofício.
Felizmente, neste tão doloroso processo, que reedita a lenda negra da tenebrosa Inquisição, não faltaram também os bons pastores, que ajudaram o professor X a carregar com a cruz, como o Arcebispo de Burgos, D. Mário Iceta, e o Bispo de Bilbao, D. Joseba Segura, diocese onde reside, e que, numa atitude de verdadeira solicitude pastoral, o recebeu e ouviu com estima, numa demorada audiência. O Bispo de Bilbao teve até uma atitude de genuína caridade: telefonar à mãe do professor X, para lhe manifestar a sua compaixão e solidariedade.
Apesar de tão injustiçado por alguns eclesiásticos, o professor X continua firme na sua fé em Deus, no seu amor à Igreja, na sua vocação eclesial e na sua oração pelo Papa, por quem, apesar de o supor mal informado e pior aconselhado, reza diariamente, com filial devoção.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada*
*Embora contrário à mediatização da justiça, a partir do momento em que o Papa Francisco se pronunciou sobre este caso, numa reportagem televisiva de alcance mundial, entendi que podia reagir publicamente, em legítima defesa das pessoas e instituições difamadas. Não conheço, nem nunca tive nenhum contacto com o professor X, embora ambos sejamos, como é público e notório, da prelatura do Opus Dei. Quero e rezo todos os dias pelo Papa, a quem sigo em matérias de fé e de moral, sempre que fala ex cathedra. Mas, em questões opináveis, como é o caso, reservo-me o direito de expressar a minha opinião, que é estritamente pessoal e que, portanto, não vincula o professor X, nem os fiéis da prelatura, ou outros católicos. Como dizia Aristóteles, sou amigo de Platão, mas sou mais amigo da verdade.