Já tinha feito publicamente as despedidas do Observador mas acontece que esse meu último artigo suscitou reacções e críticas. Uma delas, vinda do Paulo Baldaia, que muito estimo, convoca-me directamente e daí ter pedido um prolongamento ao Miguel Pinheiro, que prontamente foi concedido.
Resumindo a questão: quando avaliamos a evolução de rubricas orçamentais devemos comparar a previsão para o ano seguinte com o orçamento inicial do ano em curso ou com a estimativa mais recente que temos para a execução real dessa rubricas?
A questão só está a ser debatida porque há semanas, numa atitude inédita, o Governo decidiu quebrar a boa prática sempre utilizada, incluindo por ele próprio no Orçamento de 2016, e decidiu comparar com valores orçamentados iniciais e não com os últimos dados disponíveis.
Expliquei detalhadamente o “truque” aritmético e os seus efeitos na percepção das opções do governo. Isto tem tudo a ver com táticas de comunicação e nada com estratégia de governação. Até porque os números para 2017 são sempre os mesmos e são o que são.
Quais são os argumentos em defesa da prática do governo?
O primeiro, utilizado primeiro por dirigentes socialistas nas redes sociais e também por Paulo Baldaia, é que não se devem “misturar alhos com bugalhos”, comparando orçamento projectado com execução estimada. O argumento pode ser tentador e de fácil percepção popular mas esbarra em dados objectivos, técnicos e de bom senso. Se queremos avaliar as opções políticas de cada orçamento o que temos é de olhar para o nível de receitas e despesas que temos hoje e ver como é que o governo as faz evoluir, privilegiando uma áreas em detrimento de outras. Se em vez da realidade formos buscar uma previsão dela que já tem um ano, estamos a trabalhar sobre dados que já foram ultrapassados e que já não reflectem dados objectivos. Estaremos a somar dois desvios: o da incerteza do orçamento que estamos a fazer ao da execução do orçamento que fizemos há um ano.
Não por acaso, a alegada mistura de “alhos com bugalhos” foi sempre o critério utilizado nas últimas décadas. Por todos os ministros das Finanças, sejam eles do PS, PSD ou CDS, incluindo pelo actual governo quando elaborou o Orçamento de 2016. Estiveram todos enganados e a enganar-nos durante todo o tempo?
O segundo argumento, centrado na Educação, é que esta área tem tido nos últimos anos uma execução de despesa que fica muito acima de cada orçamento anual. E que, por isso, não faz sentido avaliar o orçamento destinado ao sector porque, já se sabe, ele será certamente ultrapassado.
Este argumento é fantástico, porque o Orçamento para 2017 ainda não foi discutido nem votado no Parlamento mas já é dado como certo que algumas rubricas de despesa não são realistas e serão ultrapassadas. Então se há áreas que vão precisar de mais recursos porque é que não se inscrevem já devidamente nas rubricas respectivas no Orçamento? Os deputados vão discutir e aprovar um documento que, à partida, já é dado parcialmente como ficcional e não se corrige isso atempadamente? Eu sei qual é a lógica: ao longo do ano utiliza-se a dotação provisional para as áreas onde se faz suborçamentação intencional. Mais uma vez, a prática está errada porque a dotação provisional é para fazer face “a despesas não previsíveis e inadiáveis”, como consta da Lei de Enquadramento Orçamental. Ora, se estas já são previsíveis…
O que sei é que essa prática de suborçamentação tem sido utilizada por todos os governos. Mas nenhum, até hoje, chegou ao ponto de alterar os mapas do relatório orçamental para tentar ocultá-la ou para condicionar a leitura das suas prioridades. E foi isso a que assistimos agora.
Este é um debate sobre transparência e honestidade intelectual na apresentação de um orçamento e não sobre as opções concretas para esta ou aquela área. Por isso, centrar o resultado do ilusionismo aritmético do governo nos efeitos que isso tem na Educação, Saúde ou Negócios Estrangeiros desvia-nos do essencial.
Por isso fiz questão, no meu artigo desta terça-feira, de elaborar uma tabela onde há situações diversas quando se passa de umas contas para outras: há áreas em que o acréscimo é maior do que o governo nos disse na primeira versão (Defesa, por exemplo); há algumas em que o acréscimo é menor (Segurança Interna); há outras em que o decréscimo é menor (Trabalho e Segurança Social); e há outras ainda que passam de um reforço de verbas para um corte (Educação).
Que a discussão se tenha centrado na redução de verbas atribuídas à Educação em vez de sublinhar, por exemplo, o reforço destinado à Defesa é uma pergunta a fazer aos partidos e ao governo, porque a prática da divulgação orçamental é censurável de igual forma em ambos os casos.
Não alinho nas críticas ao governo só porque reduz despesas numa ou noutra área. Aliás, não podemos às segundas, quartas e sextas defender um Estado menos despesista e às terças, quintas e sábados gritar “aqui d’el rei” porque o governo está a cortar despesa aqui ou ali. Mas exijo, enquanto cidadão, que não ocultem cortes quando os fazem e que os justifiquem, usando para isso truques de algibeira. Se querem ou têm que fazer cortes, que o assumam.
Por isso, caro Paulo Baldaia, alinhei na alegada mistura de “alhos com bugalhos” apenas porque não o é. E, ainda que fosse, é a metodologia que menos nos engana.
Eu espero que o orçamento para 2017 que estarás a elaborar para o DN seja feito com base nas últimas estimativas de receitas e despesas deste ano que tenhas disponíveis e não com base no orçamento de 2016 feito há um ano. Porque o mundo já mudou alguma coisa desde então e há, decerto, desvios em relação a essa projecção, esperando que os positivos sejam mais e maiores do que os negativos.