Retine, no seu timbre metálico, o telefone portátil que repousa no tampo da mesa, adjacente ao teclado plastificado. Reconheço na composição de algarismos que se apresenta no visor iluminado o contacto da tenda exterior. Primo a tecla verde. Apresentam-me, a partir do interior da tenda fosforescente, o caso de um doente com impressionante primor e rigor catedrático. Trata-se de um indivíduo do sexo masculino, de setenta e cinco anos de idade, melanodérmico, autónomo nas actividades de vida diária, que recorre ao serviço de urgência por quadro caracterizado por febre (com temperatura corporal máxima de trinta e oito vírgula cinco graus centígrados) que não cede a terapêutica antipirética, tosse seca persistente, bem como dispneia e fadiga para esforços progressivamente inferiores, com cerca de setenta e duas horas de evolução. Sem contactos ou contexto epidemiológico relevante. Apresenta como antecedentes pessoais de relevo cardiopatia restritiva, em contexto de amiloidose cardíaca recentemente diagnosticada, e hipertensiva, em contexto de hipertensão arterial de longa data e de difícil controlo. A colega afiança-me que registará em sistema a medicação habitual do doente, de que não dispõe no presente momento. Explica-me que referencia o doente para o espaço em que me encontro (dedicado à avaliação e monitorização de doentes com casos suspeitos de infecção por SARS-CoV-2 com critério clínico de gravidade) pelo grau de dispneia e pelas baixas saturações periféricas do doente. Refere-me que a zaragatoa para pesquisa do vírus foi já colhida. Aceito a transferência e solicito a passagem do doente para o quarto quatro, onde o observarei de imediato. A colega agradece e conclui de forma cordata a chamada. Pouso o telefone e informo o enfermeiro que comigo se encontra na sala que receberemos um doente. Preparamos material de colheita de sangue e peço, antes mesmo de entrar, radiografia de tórax e electrocardiograma pelo sistema informático. Equipamo-nos, cruzamos a antecâmara que entremeia a sala em que nos encontramos e a área em que se encontram os quartos dos doentes, e infiltramo-nos pelo corredor cor de pérola revestido a portas brancas. Estaco perante a porta que apresenta o número quatro na placa identificativa lateral. Bato-lhe ao de leve e obtenho prova verbal de aquiescência relativa à minha entrada. Pouso a mão duplamente enluvada no puxador cinza, giro-o e entro.

Detenho-me perante uma figura singular, portador de um brilho próprio de protagonista de romance colonial – estatura de girafa, porte de leão, tez achocolatada, e dentes ebúrneos; um panamá creme, envolvido por uma fita azul e escarlate, apenas pousado sobre a cabeça, colete, casaco e calças no mesmo tom, camisa azul clara, gravata azul escura e sapatos castanhos. A máscara cirúrgica que lhe deveria parcialmente recobrir a face caiu aquando da transferência da tenda para este espaço. Apresento-me e recebo em troca a revelação da brancura das peças que mobilam a boca do meu interlocutor que tenta articular e concatenar vocábulos, tarefa dificultada pela significativa dispneia que lhe entrecorta a oração. Os seus lábios de terracota e os seus dedos de chocolate conservam a cor original, o que me tranquiliza moderadamente. Avalio, com o oxímetro portátil, uma saturação periférica de oxigénio enquanto abro os botões perlados da camisa celeste e pouso a membrana de plástico do estetoscópio sobre o tórax. Rapidamente colho sangue arterial para gasimetria e restantes análises. Introduzem-se os óculos nasais nos orifícios respectivos, coloca-se um acesso venoso em tempo recorde, infundem-se os fármacos pela veia, prepara-se a câmara expansora e administra-se a terapêutica broncodilatadora. Não nos desequipamos, ficamos com o doente neste seu quarto improvisado e testemunhamos a subida das saturações periféricas de oxigénio e a melhoria clínica que o doente vai paulatinamente experienciando. Miramo-nos, eu e o enfermeiro, com um olhar tácito de alívio e satisfação. Talvez seja este o verdadeiro êxtase de ouro do nosso métier.

O doente acena com a cabeça e lança-me uma questão, já através da máscara, no momento preciso em que retorno ao corredor “Doutor, conhece África?”.

Conseguimos ir extraindo orações simples em resposta a questões directas que vamos dirigindo ao nosso doente. Compreendemos que se trata de um homem aparentemente letrado, bem-educado e com um sentido de humor muito próprio. Chegam, entretanto, as técnicas de cardiopneumologia transportando o electrocardiógrafo, e o aparelho portátil para realização de radiografia. Dada a estabilidade clínica do doente fazemos menção de nos desequipar, permitindo às técnicas ganhar espaço de manobra e poder condignamente trabalhar. Explicamos ao doente que dispõe de um intercomunicador que poderá utilizar para falar connosco em caso de necessidade. Reforçamos que estaremos na sala vizinha prontos a entrar novamente em perímetro asséptico a qualquer momento.

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O doente acena com a cabeça e lança-me uma questão, já através da máscara, no momento preciso em que retorno ao corredor “Doutor, conhece África?”. Começa a tornar-se recorrente ser abordado relativamente a geografias nos últimos tempos. Tomo-o como uma prova de confiança. Talvez me julguem um bom conversador, o melhor de todos os elogios, e um nómada temporário, outro óptimo elogio. Respondo-lhe que apenas conheço vagamente o norte de África, que visitei de passagem, sem tempo para me misturar e deixar envolver pelo povo e pela cultura – o único modo de conhecer um continente. Senti, apesar de tudo, África como minha ao ler a obra de Karen Blixen (muito mais do que ao ver a obra de Sydney Pollack), e, acima de tudo, ao ouvir deleitosamente as aventuras e desventuras passadas em Angola e Moçambique contadas pelos amigos do meu avô (que por lá viveram durante largos anos) nas suas tertúlias semanais — almoços faustos em alimento, boa disposição e cultura, nos quais marquei presença com o meu avô desde os meus dez anos, onde era a mascote e uma espécie de elixir da juventude para aquele grupo de amigos que, à data, ultrapassavam já os setenta anos de idade, e que seguramente abordarei em detalhe em ocasião e sede própria; sabe Deus a falta que sinto dos almoços à quinta-feira no Parque Mayer, na companhia da nossa querida amiga Georgina, por nós carinhosamente tratada como Gina – que dá nome ao restaurante –, do Júlio e de um restante rol de clientes e empregados que conferiam uma atmosfera muito própria ao espaço.

Na maioria dos relatos sobressaíam as descrições de pirilampos flutuando no ar límpido, subindo e descendo como que transportados por ondas, de gazelas de olhos cor de púrpura, nariz de trufa, e orelhas de seda, de iguanas tricolores aquecendo-se ao sol sobre pedras achatadas, de cucos e rouxinóis cortando melodicamente o silêncio da madrugada, de flamingos de plumagem rosa e vermelha repousando, em extraordinário equilíbrio, nas margens dos lagos, de papagaios de língua afiada empoleirados nos ombros de nativos, de girafas de olhos doces trotando pela savana, e de leões de porte aristocrático perscrutando o horizonte.

Dado o facto de alguns desses amigos do meu avô terem sido pilotos aviadores também os relatos eram impregnados e insuflados de referências a aterragens heroicas em planícies e panoramas aéreos de desertos castanhos e secos, leitos de rios acentuados por tortuosas faixas verde-escuras que acompanhavam o seu trajecto, montanhas escarpadas e penhascos rochosos, lagos de um azul intenso, densas matas de bambus e, quando a baixa altitude, à perpétua cinética dos animais espraiando-se pelas planícies.

Existiam permanentes referências às virtudes dos povos africanos, portadores de uma inocência, pureza, e sagacidade especiais, aos seus costumes, ao seu vestuário e às maravilhas da sua gastronomia. Falava-se deles com saudade, nostalgia e carinho.

Aqui está o pouco que conheço de África. Mesmo assim, reforço, já a senti como minha. O meu interlocutor, visivelmente mais confortável, cruza a perna, e esboçando um sorriso informa-me: “Sabe Doutor, há duas coisas na vida de que me orgulho muito: uma é de ser moçambicano, outra é de ser um excelente contador de histórias”. Devolvo-lhe o sorriso e notifico-o de que somos almas quase gémeas na medida em que deste lado está alguém que sempre aspirou a ser um bom contador de histórias. Sinto-me pressionado pelas técnicas que esperam, impacientes, no corredor e sugiro-lhe que conversemos posteriormente pelo intercomunicador. Despeço-me com um aceno e desapareço, por entre uma nuvem de desculpas e escusas, num passo de Houdini até à antecâmara onde, por fim, me desequipo.

A noite tem sido parca em admissões neste ponto do serviço de urgência o que me permite ir ouvindo, a espaços, algumas pequenas histórias com que este meu doente me vai presenteando à distância, pelo intercomunicador. É custoso o ajuste do volume, não é fantástica a qualidade do som e é frequente o corte da transmissão do mesmo.

Ouço-o dissertar sobre príncipes somalis e seus turbantes de seda, piratas do Índico e seus mercados flutuantes, pescadores de Madagáscar e seus caranguejos, lagostas e corais, feiticeiros de Mombaça e seus poderes alquímicos, guerreiros Massais e plantações de linho.

As narrativas, pela sua simplicidade, misticismo e magia, têm o poder de me aplacar o espírito no final de um dia de intensa labuta, e de me tranquilizar a mente porque o facto de as conseguir verbalizar por completo indicia de que está de facto melhorado do ponto de vista clínico.

Confirmo: trata-se de um contador de histórias nato, apesar da distorção do som que castra a narrativa de inflexões e entoações vocais. O recheio da narrativa é cativante, e lamento não poder observá-lo enquanto narra. Tão importante como a palavra é a comunicação não verbal, materializada especialmente na expressividade do olhar e nos movimentos corporais. Pergunto-me: será que escreve como fala? Será um escriba próximo, em estilo e cadência, dos angolanos Pepetela, Agualusa ou Ondjaki? Ou terá um estilo semelhante ao do seu compatriota Mia Couto?

Deixo-me ficar, saboreando longa e lentamente uma chávena de café da máquina, e degustando a ceia que me trazem a meio da noite enquanto o ouço nas múltiplas ocasiões em que lhe apraz premir o botão do intercomunicador e perguntar se ainda aqui estou para logo começar mais uma “estória” impregnada de realismo mágico. Conhecerá Rulfo, García Márquez, Borges ou Cortázar? Fruo do prazer desta fusão de estilos e dos detalhes com que vai preenchendo os seus breves contos. Ouço-o dissertar sobre príncipes somalis e seus turbantes de seda, piratas do Índico e seus mercados flutuantes, pescadores de Madagáscar e seus caranguejos, lagostas e corais, feiticeiros de Mombaça e seus poderes alquímicos, guerreiros Massais e plantações de linho.

Retorno, no decorrer do meu turno, por duas ocasiões ao corredor e ao interior do quarto quatro. Aproveito para repetir a gasimetria, ir reduzindo o aporte de oxigénio, ir reavaliando do ponto auscultatório e para lhe dizer que é provavelmente um dos melhores contistas que já tive o prazer de ouvir. Pergunto-lhe se alguma vez pôs por escrito o que me conta de viva voz. Responde-me que o seu punho compõe frases muito menos perfeitas do que a sua voz. Despeço-me, aquando da última ida ao interior do quarto, com uma vénia. Explico-lhe que o meu turno está prestes a terminar e que serei substituído por um outro colega. Agradeço-lhe a companhia que me fez ao longo deste período da noite. Explico que da conjugação dos dados clínicos, laboratoriais e radiográficos resulta uma probabilidade moderada a elevada de infecção por SARS-CoV-2. Aguardamos o resultado da nova gasimetria, os resultados de um novo exame de imagem entretanto solicitado, e o resultado da zaragatoa para a pesquisa do vírus para tomarmos decisões relativamente aos passos imediatos. Sei que as fibrilhas amiloides (já que gosta tanto de imprimir cor ao que conta, saiba que nessa amostra de gordura abdominal que lhe extraíram há umas semanas, brilham, quando coradas com vermelho do Congo e observadas ao microscópio, estas mesmas fibrilhas com birrefringência verde-maçã) que lhe vão infiltrando silenciosamente o miocárdio lhe encurtarão marcadamente o tempo de que dispõe para contar e narrar “estórias”, mas saiba que sempre que quiser premir o botão do intercomunicador eu estarei do outro lado pronto a ouvi-lo. Ao desequipar-me na antecâmara miro através do vidro a noite gélida e silenciosa de Lisboa, mas estou certo de que, se observar e escutar com atenção, lá estarão, para lá do parque de estacionamento, os embondeiros alinhados, os desertos secos, os leitos dos rios, as montanhas escarpadas, as matas de bambus e espraiando-se por essas planícies as gazelas, as girafas e os leões enquanto os cucos, os rouxinóis, os flamingos e os papagaios esvoaçam por entre ramos e folhagens. Nesse instante tenho a certeza absoluta de que África é mesmo minha.