O teatro anatómico: palco frequentemente ermo, eterna câmara dos segredos.

Os veios e as imperfeições, hieróglifos codificantes de história e estórias, da madeira ebenácea conferiam uma aura sacramental às duas grandes portas que concediam o acesso a este laboratório de ciência e arte.

Lá dentro a luz, filtrada e coalhada pelo vidro das janelas amplas, espraiava-se em matizes amostardadas moldando partículas suspensas, pasteurizando fluídos que polvilhavam os tampos negros, marmóreos, das velhas mesas de dissecção e alumiando as preparações humanas que preenchiam as prateleiras que circundavam cada mesa. O acervo era vasto. Coexistiam inúmeras preparações (muitas delas datadas do século XIX), contidas em boiões cilíndricos (todos eles elegantemente etiquetados) parcialmente repletos de formol, cujo aroma almiscarava intensamente a atmosfera.

O cenário de cabeças, corações, e fígados mergulhados em líquido âmbar e recortados contra o tom rosado do mármore que recobria as paredes era, no mínimo, pitoresco.

Enquanto aluno nutri um gosto especial pela Anatomia Normal e pela Neuroanatomia (secretamente a minha favorita de entre as disciplinas do estudo morfológico descritivo e topográfico do ser humano). A certo ponto, no decorrer do meu curso de Medicina, dediquei-me ao estudo de uma estrutura denominada Locus Ceruleus. O Locus Ceruleus é um núcleo, composto por múltiplos neurónios de pigmentação azulada, que se alonga como a cabeça de uma girafa pela porção superior da ponte, um dos segmentos do tronco cerebral, desempenhando importante papel em processos como a regulação do ciclo sono-vigília, a promoção e sustentação da atenção selectiva, a consolidação de memórias ou a modulação da resposta ao stress, a estímulos dolorosos ou ao medo. Tínhamos como objectivo mapear a distribuição de determinados tipos de receptores neuronais por toda a extensão deste núcleo. Esta tarefa requeria a obtenção de cérebros humanos (regularmente provenientes de dádivas voluntárias, em vida, de corpos à ciência), a sua dissecção cuidadosa no teatro anatómico, a inclusão das peças resultantes em parafina, o corte das peças com micrótomo, a marcação com anticorpos e corantes fluorescentes, e a observação ao microscópio electrónico – tarefa que me proporcionava grande fruição dada a extraordinária intensidade do verde maçã e do encarnado cereja com que refulgiam os receptores em diferentes compartimentos celulares de diferentes células.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Passava, com prazer, várias manhãs dissecando cérebros na minha câmara dos segredos, fatiando blocos parafinados ao micrótomo (uma espécie de navalha microscópica), e observando e fotografando misturas e explosões de cor ao microscópio electrónico.

Cruzava, numa dessas manhãs, os dois grandes pórticos de madeira do teatro anatómico, marcos geodésicos de uma fronteira sagrada, retornando a uma das salas em que trabalhava com o Francisco, o meu mestre na arte da dissecção, do corte micrométrico e da observação ao microscópio electrónico. Vislumbrei a silhueta de uma senhora idosa (o cabelo níveo, porém perfeitamente esculpido a laca, e o recorte cifótico denunciavam-na) bem lá ao fundo do corredor. Ouvi fragmentos esparsos da conversa com uma das funcionárias do Instituto de Anatomia e apercebi-me de que esta senhora se deslocara aos nossos aposentos por forma a manifestar o seu desejo de doar o corpo ao Instituto para estudo e investigação futura. Escutei, alguns minutos depois, o som arrastado dos saltos ressoando no soalho envelhecido. A toada foi ficando progressivamente mais clara, mais próxima. Encontrávamo-nos ambos sentados ao micrótomo trinchando blocos de parafina. A nossa funcionária entrou fazendo-se acompanhar da senhora, impecavelmente maquilhada e aprumada. Apresentou-nos. A senhora fez menção de me tratar por Doutor, tendo eu feito questão de clarificar que me tratava apenas de um mero estudante de Medicina. Ela prosseguiu persistindo nesta mesma forma de tratamento. Referiu que fora doente do Hospital de Santa Maria desde os anos sessenta. Fez questão de mencionar que os colegas que me antecederam lhe prolongaram a vida, e que, mais do que isso, lha dotaram de extrema qualidade. Era chegada a hora dela devolver o enlevo e carinho com que sempre fora tratada dentro daquelas paredes dando aos futuros clínicos e investigadores a possibilidade de aprender e produzir ciência. Despediu-se com uma frase que ainda hoje ressoa nos confins da minha memória: “Confio em si”. Levantei-me, e despedi-me com um aperto de mão firme. Fluía em mim uma mescla de emoções: orgulho pela confiança que em nós, jovens alunos e investigadores, depositava e melancolia por saber que o seu cérebro provavelmente só cruzaria a fronteira sagrada, acedendo ao teatro anatómico, após a autópsia. Friamente sabia que o seu cérebro poderia corresponder a um dos vários, sempre anónimos, que dissecaria nos meses seguintes. Talvez apenas aí me tenha realmente apercebido do que é ser médico, e do peso e responsabilidade que recaem sobre os ombros de quem abraça esse sacerdócio.

“Não se preocupe Doutor. Eu não estou preocupada. Confio em si”.

Já não corrijo quem me interpela por detrás da máscara, também ela de pigmentação azulada. Agora, já médico e interno de formação especializada, sempre aspirante a investigador, conheço intimamente o peso e a responsabilidade que sobre os meus ombros recaem. Encanto-me, mais do que pela Anatomia Normal e pela Neuroanatomia, pela Biologia Molecular e Celular, pela Genética, e pela Oncobiologia. Mais do que isso, o que realmente me enfeitiça e me faz empurrar os pórticos (agora) metálicos do laboratório, que é também um altar de ciência e arte, a minha eterna câmara dos segredos, são histórias de gente real, feita de dor, sofrimento, sonhos e esperança.

É esse o meu combustível, é isso que também me faz equipar todos os dias e saltar para o lado de lá desta outra fronteira por forma a trazer de volta para o lado de cá quem por isso anseia.

É a penúltima resistente. Originalmente, naquele quarto, eram quatro as senhoras que fomos conhecendo a cada visita e a cada observação diária. Já conseguimos trazer duas de volta. Paulatinamente, uma a uma, creio francamente que conseguiremos trazê-las a todas para o lado de cá, sãs e salvas.

Espontaneamente, no decorrer da última das minhas observações em internamento, esta senhora questiona-me de que modo pode ajudar-nos a tornar frutífera a investigação que se vai desenvolvendo. Deseja saber como pode ajudar quem passa ou passará pelo que passou na primeira pessoa. Compreende que o nosso trabalho não se esbate, esgota ou esfuma no momento presente, mas que se projecta indelevelmente no futuro. Explico-lhe que tipo de colheitas se fazem, que tipo de colheitas previsivelmente se farão, ideias concretas e projectos abstractos. Repete-me, durante todo o exame objectivo, que conte com ela. Opto por recordar-lhe, no decorrer da observação, que as colheitas poderão ser dolorosas e demoradas. Segura-me a mão enluvada (agora são elas que me seguram a mão) e diz-me, pausadamente: “Prolongaram-me a vida, deram-me qualidade de vida, deixem-me dar-vos matéria com que trabalhar, deixem-me contribuir para prolongar e dar qualidade de vida aos que ainda hão-de vir. Não se preocupe Doutor. Eu não estou preocupada. Confio em si”.

E subitamente recordo-me de mim, aluno imberbe e entusiasta sentado ao micrótomo ouvindo, há uns bons anos atrás, a voz rouca de alguém cujo nome sempre desconheci dizendo:

“Confio em si”.

Há fluxos constantes, fronteiras sagradas e fronteiras mundanas que são cruzadas em sentidos múltiplos e passaportes metaforicamente carimbados. Há quem da lei da morte se liberta definitivamente, cruzando as portas de madeira que franqueiam a entrada no teatro anatómico, e há quem da lei da morte se liberta deciduamente, cruzando a linha vermelha que dá acesso à zona limpa deste mundo.

Alimentam a chama perpétua do conhecimento que lenta, mas continuamente derrete a cera do lacre que encerra o futuro.

Horas mais tarde, a terceira das quatro ocupantes originais daquele quarto cruza a fronteira do serviço e retorna ao lado de cá.

Ao passar por mim, dirige-me um sorriso com os olhos e um aceno com a mão a prudente distância. Retribuo-lhe o sorriso e o aceno e agradeço-lhes mentalmente:

“Minhas senhoras, obrigado por confiarem em mim”.