Em sua única visita ao Brasil, em 1994, a ex-primeira-ministra Margaret Thatcher justificou o epíteto de Dama de Ferro. Madame Thatcher, convicta da relevância do legado deixado para seu país e o mundo, cravou frases que marcaram sua célebre passagem pelo país: “Parece-me bem claro que o Brasil não teve ainda um bom governo, capaz de atuar com base em princípios, na defesa da liberdade, sob o império da lei e com uma administração profissional”, disse para uma seleta plateia de políticos e empresários em São Paulo.
Passados quase 25 anos, a governança do Estado brasileiro parece estacionada na mesma conjuntura trágica diagnosticada por Thatcher. Isso faz com que o grande desafio de Bolsonaro seja reestruturar o país, ao mesmo tempo em que administra a mais grave crise econômica da história. Em certa medida, situação similar àquela deixada pelos trabalhistas ingleses em 1979, quando assumiu o cargo de primeira-ministra: um país destroçado pela incompetência das mentes imprudentes socialistas.
Contudo, a depender dos adversários, Bolsonaro não terá vida fácil na presidência. Por si mesmo, recolocar o Brasil nos trilhos do desenvolvimento econômico e social depois da tragédia lulopetista requerer esforço redobrado. A sabotagem pelo estamento burocrático encastelado no poder visando manter privilégios alargou um pouco mais a missão de Bolsonaro. Num verdadeiro salve-se quem puder, muita casca de banana foi lançada no caminho para desestabilizar o futuro governo.
Velhacarias do Supremo Tribunal Federal (STF) foram tratadas no último artigo deste escrevinhador, publicado neste Observador. Como desgraça pouca é bobagem, vale registrar ainda que, na véspera do recesso do Judiciário, um ministro do STF liberou o reajuste dos salários dos servidores federais. A benevolência pressiona em R$ 4,7 bilhões o já deficitário orçamento da União. Contudo, o Legislativo e o Executivo não deixaram por menos, cada um deu sua contribuição, em favor dos interesses de seus membros e contra o Brasil.
No Congresso, uma série de bombas fiscais foram armadas. Uma clara demonstração de que o mandato popular se converte em extensão de negócios particulares de políticos mal-intencionados. Propostas aprovadas ou que avançaram no Legislativo somam um impacto de R$ 259 bilhões nos próximos quatro anos.
A maior obscenidade, no entanto, ficou por conta do próprio presidente da Câmara dos Deputados. No exercício da Presidência da República, durante viagem de Michel Temer, Rodrigo Maia aproveitou para acenar aos prefeitos, em busca de apoio para renovar seu mandato no comando da Casa. Numa canetada, sancionou um projeto que flexibiliza a Lei de Responsabilidade Fiscal. Por outras palavras, o gesto tresloucado de Maia liberou de punição os municípios que passarem do limite com gasto de pessoal.
De saída pela porta dos fundos do Palácio do Planalto – Michel Temer está sendo denunciado pela Procuradoria-Geral por corrupção e lavagem de dinheiro –, o chefe do Executivo não deixou de fazer a alegria dos vivem de facilidades com o dinheiro público. Dentre outras imoralidades, nomeou para diretoria de agências reguladoras do país apaniguados políticos que não conseguiram se reeleger. Conhecimento técnico e formação universitária, requisitos para ocupar o cargo, foram ignorados. Importava mesmo era proteger os aliados das intempéries.
No apagar das luzes de seu insosso governo, Temer justificou por que foi duas vezes vice-presidente de Dilma Rousseff e criou mais uma estatal. A NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea S.A. se junta a outras 418 empresas controladas direta ou indiretamente pela União, Estados ou municípios. Orgulhosamente, o Brasil tem o maior número de estatais do mundo. Mesmo com o país ostentando índices negativos em vários rankings, Temer saiu de cena esbanjando autoconfiança. Ou seria hipocrisia?
Único presidente a inaugurar memorial ainda durante o mandato, Temer apressou-se em não permitir que seu nome caia no esquecimento. Certamente, um esforço desnecessário. Temer será lembrado, e muito, mas não por seus feitos memoráveis. O presidente mais rejeitado da história do país será evocado sempre por ter se apequenado diante da oportunidade perdida de iniciar reformas profundas. Da mesma forma, será lembrado quando seus processos na Justiça ganharem celeridade com a perda do foro privilegiado.
Todavia, o esforço do Executivo de obstaculizar o governo Bolsonaro parece ter sido em vão. O novo presidente determinou à sua equipe rever todas as medidas praticadas nos últimos dois meses do mandato de Temer. Nos primeiros dez dias, uma operação pente-fino vai verificar se os atos estão de acordo com os compromissos do governo Bolsonaro. Contudo, de imediato, pouco ou quase nada pode ser feito relativamente aos feitos do Legislativo e do Judiciário.
Muito foi feito para sabotar o governo que se inicia. Mas, o que realmente tem incomodado o clã Bolsonaro é a ainda não explicada movimentação financeira incompatível com os rendimentos do ex-assessor parlamentar de um dos filhos do presidente. A turbulência pôs fim ao céu de brigadeiro no qual Bolsonaro passeava sobre seus adversários.
O imbróglio remete para uma prática ilegal, porém corriqueira, de repasse para políticos de parte do salário dos funcionários de gabinetes. No PT de Lula da Silva, o “dízimo” é norma programática. Seus políticos aparecem no topo da lista com movimentações milionárias. Contudo, Bolsonaro foi eleito sob o mantra de limpeza da sujeira na qual o PT e seus aliados chafurdaram o Brasil. O caso deve ser apurado, e a ilegalidade, punida, doa a quem doer.
À revelia da vontade da maioria dos representantes da sua classe política, o Brasil que o capitão reformado do Exército vai governar é certamente um país diferente. Viu florescer combativas lideranças liberais capazes de provocar um debate alternativo à uníssona narrativa progressista que dominou a política brasileira nas últimas cinco décadas. Mais importante, o avanço da cidadania faz com que cada vez mais pessoas tenham clareza dos seus direitos e deveres e assumam protagonismo na sociedade civil.
Na altura em que os brasileiros se despedem de um longo ciclo de governos progressistas, responsáveis por conduzir o país à bancarrota moral e material, relembrar o exemplo de Margaret Thatcher é exercício profícuo. Obstinada e implacável em seus propósitos, fez da austeridade, da crença nas instituições do Estado e da valorização do indivíduo cânones para recuperar a Inglaterra, assolada pelo trabalhismo fiel ao delírio socialista.
Margaret Thatcher revolucionou seu país e inscreveu seu nome no rol dos líderes mundiais mais importantes. Conseguirá Bolsonaro transformar o caos em ordem e progresso? Enquanto o horizonte não se revela, lembremos mais uma vez madame Thatcher: “O Brasil é o país do futuro, mas para tanto é preciso decidir que o ‘futuro’ é amanhã. E, como bem sabem, isto significa que as decisões difíceis têm que ser tomadas hoje”.
Jornalista e doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Pesquisa os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial.