Já se sabe que, aos olhos do debate político, tudo é relativo. Não é de agora, claro, mas nunca foi tão patente como é hoje. Daí que, para a actual maioria parlamentar de apoio ao governo, a ocorrência de incêndios, que era (entre 2011-2015) uma consequência da incompetência governamental, seja agora um infortúnio causado pelas condições meteorológicas. Daí que os atrasos de pagamentos nos hospitais, que eram (entre 2011-2015) actos neoliberais para a destruição do Serviço Nacional de Saúde, sejam agora meros actos de gestão das contas públicas. Ou daí que a pioria dos resultados dos exames nacionais e o aumento dos chumbos, que (entre 2011-2015) simbolizavam a elitização do ensino e a exclusão dos mais desfavorecidos ao acesso à educação, sejam agora resultados normais que dão pistas sobre o que há para melhorar na escola pública. Enfim, a lista de exemplos é inesgotável.
A quem assiste aos ziguezagues desta nova duplicidade de critérios sobeja o lamento de que tudo seria uma divertida silly season caso a tontice fosse inocente e passageira. Não é. O ponto de interesse está, portanto, na pergunta – o que justifica esta duplicidade de critérios?
Uma parte da resposta surge como óbvia: é evidente a alteração comportamental de PCP e BE, a quem muitos têm (legitimamente) apontado o dedo – sobre os incêndios, por exemplo, leia-se o André Azevedo Alves. Mas a viragem destes partidos era expectável e tem uma justificação acessível. Afinal, BE e PCP, que detêm o monopólio do protesto, entraram na esfera do poder e tiveram de ajustar o seu tradicional discurso populista ao compromisso de apoiar o governo PS. É certo que, nesse processo e por comparação com o seu passado, expuseram a demagogia que aplicaram durante anos em debates e inquéritos parlamentares. Mas, em termos práticos, sem consequência: se a hipocrisia matasse em política, não teríamos partidos.
A outra parte da resposta à pergunta inicial é menos óbvia, embora mais interessante: não foram apenas BE e PCP que mudaram a forma como encaram os factos políticos, mas também vários jornalistas que, cobrindo temas sociais, abdicaram do dramatismo que marcou os últimos anos. Não é necessário um grande esforço de memória para recordar como, entre 2013 e 2015, o debate público foi invadido de notícias sobre crianças com fome nas escolas, sobre jovens que emigravam em fuga pela ausência de oportunidades profissionais, sobre estudantes que desistiam do ensino superior por falta de recursos, sobre idosos abandonados em condições de pobreza, sobre famílias carenciadas para as quais o Estado não tinha resposta. Mas, desde as eleições legislativas, essas notícias desapareceram. Afinal, em Portugal já não há fome, pobreza, abandono dos estudos e emigração?
Há, infelizmente. Nenhum governo corrige todas estas desgraças em nove meses – nem tal poderia ser exigido a António Costa, como bem assinalou Henrique Monteiro, o único (que eu tenha lido) a chamar à atenção para o tema. E, no entanto, se exemplos destas desgraças continuam a existir na realidade, o ponto é que deixaram de existir nos jornais desde que há uma maioria parlamentar de esquerda. Porquê? A pergunta tem de suscitar reflexão. Porque, efectivamente, não existindo muitas possibilidades de resposta, todas são preocupantes. Aconteça de forma voluntária (por motivações políticas) ou de forma involuntária (por recurso preguiçoso às fontes partidárias), esta súbita ausência implica que parte do nosso jornalismo está demasiado apoiado nas fontes e agendas partidárias, em vez de construir as suas próprias notícias e reportagens. E o problema vai muito além da questão da fiabilidade das notícias. Está, sobretudo, no enfraquecimento do próprio jornalismo.
Ora, como se resolve um problema desta natureza e no actual contexto dos jornais – com redacções cada vez mais pequenas, com gente mal paga e demasiadas vezes inexperiente? Não sei. Mas sei que tem de ser resolvido e que este é um debate urgente. É que dele depende a qualidade do jornalismo e do debate público. E, consequentemente, da nossa democracia.